O Em Luta esteve à conversa com Vanda Mendes, funcionária da Câmara Municipal de Lisboa e ativista do movimento Missão Pública Organizada, para saber como está a situação no setor depois destes 4 anos de legislatura. No final, retiramos algumas conclusões sobre esta problemática.
Vanda começou por nos relembrar que a Câmara Municipal de Lisboa é uma das principais câmaras municipais do país e é governada, tal como o Governo do país, pelo PS com o apoio do Bloco de Esquerda. Nesse sentido, a primeira questão que nos frisou claramente foi que, no essencial, o que houve na Função Pública nestes 4 anos foi uma continuidade do que já existia, e não uma mudança do seu funcionamento e dos seus problemas. A partir desta conversa, elencamos aqui os temas que nos pareceram mais relevantes, para que os nossos leitores tenham uma visão global do estado de um setor que agrega milhares de trabalhadores no país.
SIADAP: um sistema de contenção salarial
O SIADAP é o Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública, vigente desde 2007. Embora apareça “apenas” como um sistema de avaliação, ele cumpre hoje um papel estrutural em diversos aspetos dos serviços da Função Pública.
Um dos elementos centrais deste sistema de avaliação é que tem quotas percentuais pré-definidas de quantos trabalhadores podem ter uma determinada nota.
Mesmo que haja mais trabalhadores com notas superiores, o sistema não permite atribuí-las. Como nos contava Vanda:
“O SIADAP não é um sistema de avaliação, mas de contenção salarial. Como pode ser uma verdadeira avaliação se já está tudo pré-definido? 75% têm obrigatoriamente de ser Adequados e depois há uns privilegiados que podem ser Muito Bonsou Excelentes. Mas será que são só esses 25% de funcionários que fazem funcionar os serviços? Como é que é possível ter serviços de excelência com 75% de adequados?”.
Por outro lado, a possibilidade de avançar na carreira está dependente desta avaliação, que estabelece à partida quantas pessoas podem ter avaliações que permitem subir na carreira:
“Desde que se aplicou o SIADAP, temos colegas que já subiram duas ou três vezes e temos colegas que não subiram nenhuma. Há uma grande discrepância. Uma pessoa que consegue em dois anos ter seis pontos e outra dois; se para subir são necessários 10 pontos, uma sobe e outra não. Tem que ser uma coisa atingível, o que não é, quando está tudo pré-definido. São 120 anos de trabalho para chegar ao topo da carreira. Fica claro que nunca vamos lá chegar”.
O atual Governo manteve também a redução dos 25 para 22 dias de férias, realizada pelo anterior Governo de Passos Coelho e Paulo Portas. O SIADAP tem também consequências nos dias de férias que cada funcionário pode gozar, pois os pontos da avaliação permitem ganhar (ou não) mais dias de férias:
“O SIADAP dá dois dias a quem tem dois pontos (de avaliação), quatro dias a quem tenha os quatro pontos e seis dias a quem tenha os seis pontos.”
Ou seja, o sistema de avaliação, já de si injusto, penaliza não apenas salarialmente, mas também nas férias, aprofundando as injustiças e desigualdades entre funcionários.
A desmotivação e impacto destrutivo nos serviços
Ficou claro que uma das consequências mais concretas deste modelo de avaliação é a desmotivação e a destruição do sentido coletivo dos serviços, fundamental para que estes possam funcionar:
“A cidade de Lisboa tem estado ao rubro e isso traz mais trabalho e exigências. Mas com a limitação de recursos e de pessoas, andamos todos a 300%. Mas apenas uns poucos podem ver esse esforço reconhecido”.
Este modelo, ao não ser uma avaliação imparcial, estabelece uma concorrência desleal entre colegas:
“Sabemos que temos de atingir X objetivos, tratar Y processos, cria-se um clima de agressividade em que ajudar o colega do lado significa não atingir os seus próprios objetivos. Isso é uma pressão brutal. Está-se a estimular um individualismo entre colegas, quando os serviços para funcionar precisam é de trabalho em equipa, num serviço e mesmo entre serviços”.
Além disso, este sistema abre espaço à dependência das chefias para poder subir na carreira, bem como ao assédio moral e chantagem. Este tipo de situação é, por exemplo, particularmente prejudical no acesso a direitos consagrados na lei, como o horário contínuo, que permite a trabalhadoras com filhos pequenos fazer a jornada de forma continuada para poderem dar maior apoio à família, mas que depois são prejudicadas na avaliação (e na carreira) exatamente por utilizarem um direito seu que está na lei.
Vanda denunciou ainda que, embora o SIADAP preveja a avaliação de serviços e dirigentes, a única parte que é aplicada na totalidade é a avaliação individual de desempenho (e não a avaliação dos serviços), que tem impacto direto na contenção salarial. Pelo contrário, defendeu que, em vez da avaliação individual, se faça uma avaliação coletiva que permita melhor serviços e melhor funcionamento das equipas:
“Vamos ser transparentes e vamos fazer a avaliação dos serviços, para podermos prestar um melhor serviço público”.
A mentira do descongelamento das carreiras
Muito se falou, durante esta legislatura, do descongelamento das carreiras dos funcionários públicos. Todavia, ao conversar com a Vanda, percebemos que este descongelamento é, em grande medida, ilusório, pois mais uma vez está atrelado ao sistema de avaliação, que não permite avançar na carreira, mesmo quando esta está teoricamente descongelada:
“Nós precisamos de ter um salário para viver e de motivação para trabalhar. Não vamos camuflar a situação quando dizem que descongelaram as carreiras se as pessoas não têm já nenhuma carreira para subir, para atingir. Temos que nos centrar em dar boas condições. Acho que ninguém gosta de trabalhar de graça e de não ter uma vida digna. E é isso que começa a acontecer.”
Relembremos nós que o salário de um Assistente Operacional é de 630€ e o de um Assistente Técnico é 680€ – duas das principais categorias da Função Pública – o que, sem dúvida, são salários que não chegam para viver com dignidade. Como referia Vanda:
“Quem viva agora em Lisboa sabe que os preços subiram imenso, por causa de o país estar virado para turismo. O país hoje tem mais entrada de dinheiro, mas isso não quer dizer que esteja melhor para quem cá vive.”
A falta de investimento e de pessoas degrada os serviços
Questionada sobre o impacto dos valores historicamente baixos de investimento público, das cativações do ministro Centeno e dos cortes orçamentais, Vanda falava-nos da falta de funcionários:
“Eles querem fazer muito com pouco e isso é muito complicado. Temos uma Função Pública muito envelhecida. Quando saem dois para a reforma e entra um, ou saem três e não entra nenhum.”
Esta, de facto, foi uma das outras medidas estruturais do Governo anterior que a Geringonça manteve e que não permite substituir o mesmo número de funcionários públicos, obrigando antes a uma redução de cada vez que alguém vai para a reforma, ou seja, a uma redução global do número de funcionários.
Além disso, a falta de investimento tem ainda consequências nos próprios equipamentos e estruturas:
“Nós temos a percepção que os próprios equipamentos que precisaríamos para dar resposta às necessidades dos serviços não existem, não estão disponíveis ou não funcionam, como os computadores, programas, os servidores, plataformas sobrecarregadas, falta de manutenção das máquinas, etc.. Tudo isto causa imenso transtorno aos serviços. São coisas banais, mas com que nos deparamos no nosso dia a dia. Já funcionamos com pessoas a menos, a falta de investimento e estruturas que não funcionem são mais um empecilho.”
Esta situação tem impacto direto nas condições de funcionamento dos serviços e, portanto, também na qualidade dos serviços prestados, com que depois se depara a população que precisa de os utilizar, com filas e horas infindáveis de espera. Esta degradação dos serviços é suportada por quem dá a cara, com funcionários esgotados e desmotivados, encurralados entre a espada e a parede:
“As pessoas que recorrem aos serviços públicos já vêm com quatro pedras na mão. Mas sem pessoas e sem meios não é possível prestar serviços de qualidade”.
É por isso que, mais uma vez, Vanda reforçou a necessidade de ver além dos objetivos quantitativos que hoje regem serviços e avaliação:
“Temos que virar os serviços para os munícipes. Mas isso acaba por ficar para trás, porque temos que andar a correr atrás desses objetivos [de avaliação] delineados de forma desadequada aos serviços e que esquecem as pessoas.”
E o processo de regularização de precários?
Outros dos temas muito falados – em particular por BE e PCP, que sustentaram a Geringonça – foi o PREVPAP (Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública), que tinha por objetivo integrar como efetivos os precários da Função Pública.
Dizia-nos Vanda sobre a importância da regularização dos precários:
“Eu, por experiência própria, comecei a recibos verdes. Foi na CML que começou essa luta pela integração dos precários, que se sabia que eram pessoas que estavam a recibos verdes, mas que eram fixas, tinham horário de trabalho, estavam sujeitas a hierarquias, utilizavam os equipamentos da entidade. A regularização foi, sem dúvida, importante para as pessoas e para os serviços, até porque quando as pessoas foram contratadas nessas condições é porque os serviços precisavam. E ao contratar novas pessoas, muitas delas mais novas, trouxeram mais valias aos serviços. Não podemos descartar quem cá está há mais tempo e tem o conhecimento e a experiência. Mas temos de começar a fazer esta passagem de testemunho, pois qualquer dia eles vão para a reforma. E quem fica?” .
No entanto, nós do Em Luta diríamos já que os dados que têm saído a público mostram que apenas uma pequena parte dos trabalhadores precários dos serviços viram a sua situação regularizada.
Os sindicatos e os funcionários públicos “esquecidos”
Perguntámos à Vanda o que foi feito pelos sindicatos que representam os trabalhadores da Função Pública relativamente ao SIADAP e aos temas aqui referidos:
“Tentámos junto dos sindicatos que eles nos ajudassem a efetivar estas nossas reclamações e não vimos isso sequer correspondido. Não obtivemos respostas. Como quem diz: reclame pacificamente nos serviços. Mas isso já nós fizemos e não tivemos respostas ou apenas respostas redundantes das chefias. E nós vimo-nos desprezados, como se isto não fosse importante, quando isto é fulcral para toda a Função Pública”.
O sentimento é, por isso, o de quem foi esquecido:
“Os sindicatos falam muito das carreiras especiais: professores, juízes, etc., mas esquecem-se da generalidade dos funcionários públicos.”
Questionada sobre se, em particular durante este Governo, notou diferença na atuação dos sindicatos, disse-nos:
“Agravou-se a dependência dos sindicatos frente ao governo. Era preciso uma posição mais forte.”
Vanda falou-nos ainda de algumas iniciativas da Missão Pública Organizada com o objetivo de ver revertido o SIADAP:
“Fomos às sessões de Câmara e Assembleia Municipal, expondo os problemas. Propusemos um inquérito sobre o SIADAP que o presidente se comprometeu a realizar ainda durante o ano de 2019, mas até agora nada. Reunimos também com os partidos que aceitaram receber-nos, como os Verdes (que chegaram a levar uma moção à Assembleia Municipal), o PCP (que apresentou uma moção na Câmara, também apoiada pelo BE), o PAN e o BE, que nos disseram que vão levar o tema à discussão. Mas não temos visto grande coisa de facto”.
A nossas conclusões: também na Função Pública, a Geringonça não reverteu a austeridade
A conversa com Vanda permitiu-nos ter uma visão mais concreta e a partir de dentro sobre a situação da Função Pública hoje. Para nós, enquanto Em Luta, é preciso, no entanto, ir um pouco mais longe e tirar algumas conclusões políticas. Estas conclusões são nossas e não vinculam, por isso, a nossa entrevistada ou o movimento que representa.
Na nossa opinião, fica claro que há uma continuidade na política da Geringonça na Função Pública e que, como consequência disso, se vão aprofundando os problemas da austeridade no setor.
Mesmo o PREVPAP não só não respondeu à totalidade dos precários como se enquadra na política de reduzir funcionários públicos, garantindo apenas a entrada de um número inferior de funcionários aos que estão hoje no quadro. As condicionantes do défice 0%, juntamente com os cada vez maiores impedimentos à reforma dos mais velhos e à abertura de novos concursos, fazem com que estejamos muito longe de ter acabado com a precariedade na Função Pública.
Fica claro que sem acabar com o SIADAP, sem devolver salários e carreiras dignas aos funcionários, sem restituir os dias de férias, sem quebrar a regra de entrar apenas 1 funcionário para cada 2 que saem, sem regularizar todos os precários e contratar funcionários suficientes não teremos funcionários motivados e serviços públicos de qualidade. Fica claro também que isso não é possível cumprindo as regras do défice e as restrições ao investimento e controle público da economia impostas pela União Europeia e pelo Pacto Orçamental.
Finalmente, é de assinalar que – tal como noutros setores – o sindicalismo de conciliação com o Governo ignora as reais reivindicações e problemas dos trabalhadores e tem impedido uma luta consequente contra o SIADAP e a situação de degradação dos serviços. O apoio de BE e PCP à Geringonça não só tem servido de tampão ao avanço destas lutas, como tem mascarado a real situação dos funcionários públicos aos olhos do resto do país, ao apoiar as ilusões de uma suposta reversão de austeridade que, de facto, na nossa opinião, não existiu.