A NOSSA CLASSE Nacional

2.º Torrão: Uma luta contra o poder pelo direito à habitação digna!

8 meses. Durante 8 meses, esperaram e desesperaram os moradores que reivindicaram o seu direito a um teto e cujas habitações foram sinalizadas como estando em risco, por se encontrarem na zona da vala de drenagem no Bairro do 2.º Torrão na Trafaria, Almada.

Demolições sem alternativa

O processo de demolição teve o realojamento parcial e insuficiente como vitória da resistência dolorosa das pessoas, ante uma Câmara para quem direitos humanos é assunto no passado colonial já resolvido no íntimo da sua Presidente.

Casos como o do 2.º Torrão demonstram a face mais aguda da crise da habitacional que vemos hoje, e também a face mais brutal do Capitalismo em Portugal – submissão custe o que custar dos mais vulneráveis ao mercado, num país onde a oferta de habitação social pública é cada vez mais uma utopia face à mercantilização do direito a um teto.

Estas eram as entrelinhas da Presidente da Câmara de Almada, Inês de Medeiros (PS), quando anunciava “o princípio do fim do 2.º Torrão” no início do processo, e que comprovamos na sua postura  conquistadora ao “derrotar todas as providências cautelares” que somente exigiam que as demolições fossem suspensas enquanto não existisse um teto para os moradores afetados.

Para a autarca, no espírito dos 30 anos do PER na periferia, os bairros irregulares são para destruir sem qualquer hesitação, mesmo que isso signifique que não aja alternativa digna e permanente.  

Foi essa abordagem, impassível, que criou o drama humano com que as famílias se depararam durante este período. Os que aceitaram as soluções temporárias da Câmara Municipal de Almada (CMA) ficaram hospedados em condições de insalubridade, sem direito à privacidade por falta de quartos, e, em alguns casos, com regime de recolher obrigatório. Aqueles que, junto ao movimento de advogados e ativistas solidários, resistiram aos despejos sem alternativa permanente foram colocados perante uma maratona de privações num bairro em situação de caos humanitário, onde as infestações de ratazanas e demais pragas urbanas foram criadas pelo mar de destroços que a CMA deixou no terreno até ao dia de hoje.

Sem chave ninguém sai!

 Neste sentido, a combinação ativistas-resistência foi fundamental pelo papel da denúncia constante e das providências cautelares, que permitiram que a Câmara não despejasse o conjunto da população do bairro de forma imaculada.

De forma extraordinária foi acionado o “Porta de Entrada”, programa de resposta a situações urgentes, como catástrofes naturais, onde é explicitamente definida a ausência de restrições legais no que toca à autorização de residência para a resposta habitacional. Ironicamente, são esses mesmos obstáculos que a Câmara evocou para justificar o abandono às suas responsabilidades durante todo este tempo, em flagrante violação dos próprios pressupostos legais.

Enquanto moradores, ativistas e advogadas eram descredibilizados e responsabilizados pela situação, bem como acusados de instrumentalização política, o Executivo camarário não assumia as suas responsabilidades, congratulando-se ainda pela gestão do processo.

Almada colonial

É para nós incompleto responsabilizar unicamente a Câmara liderada por uma política burguesa particularmente debochada, autoritária e insensível. Na verdade o caso do 2.º Torrão é só mais um dos rostos da desastrosa política de habitação que tem tornado a nossa vida cada vez mais apertada, onde os medíocres salários praticados no país não servem para pagar uma casa familiar na cidade, e estão perto de não servir para uma casa em Almada, por exemplo. É sintomático que em todo este processo, o Governo nada mais fez do que demitir-se das suas responsabilidades, limitando-se a hesitantemente ouvir, como fez a ministra da Habitação após ocupação do Ministério da Habitação pelas famílias e ativistas afetadas no 2.º Torrão e Talude em Abril, deixando para a CMA, todo o à vontade para continuar a antagonizar a população.

O caso do 2.º Torrão é mais uma demonstração de que o Racismo de Estado está vivo e de boa saúde. Não é preciso chamar ninguém de “preto” para se ser racista; basta flagrantemente tratar como sub-humano, propor demolir a sua residência, alegando um perigo ambiental de risco urgente, e  em momento algum apresentar uma alternativa permanente, criando uma situação insustentável, onde as demolições, o inferno burocrático da apresentação de certidões, atestados, prazos apertados de poucos dias, a ameaça de demolições ilegais, tornem incomportável ter um trabalho, pois este ficará no caminho das diligências diárias que a câmara exigiu nos momentos de pico, para que as pessoas provem essa idoneidade.

Não é de hoje, porém, que o poder autárquico na periferia age de forma distinta com as populações racializadas, nem é de hoje que é cúmplice do projeto de cidade dos ricos do poder central. Perguntamos o que fizeram os executivos do PCP/CDU para a regularização e inclusão do 2.º Torrão, lembramos casos como o do Bairro da Jamaica, onde o executivo, mesmo ante uma bárbara intervenção policial, veio em defesa dos “trabalhadores”, que neste caso seriam apenas os polícias -não seremos todos trabalhadores?. Lembramos também  o seu papel na aplicação dos planos PER, responsável pela guetização. Por isso, a todo o momento, desconfiamos do seu compromisso antirracista e das suas visões da classe trabalhadora. 

Para nós, não resta qualquer dúvida de que o tratamento abjeto e racista que tão bem conhecemos e que tanto desequilibra a sociedade voltou a acontecer no 2.º Torrão.

E não perderemos memória disso mesmo. É preciso responsabilizar a Presidente da Câmara, o Estado e o Governo. O Racismo Institucional é este, que constantemente deixa à margem, onde as leis não se aplicam, onde o que deve ser assegurado pelo Estado é “assegurado” oralmente, onde os meios do Estado servem para erguer um muro de silêncio e isolamento às populações. O Estado português e a Câmara Municipal de Almada são racistas, negaram sistematicamente aos habitantes do 2.º Torrão o acesso ao direito a habitação digna, aproveitando o estatuto de imigrantes de pessoas racializadas e pobres para o fazer.

A luta continua

Prova disso mesmo é que, afinal, após este tempo todo, a CMA somente precisava de uns míseros dias para reunir com as pessoas e apresentar alternativas habitacionais, ainda que distantes e desadequadas (como sempre tem sido o seu hábito), rapidamente surgiram quando foram obrigados legalmente a fazê-lo. No entanto, aqui também a lógica de mercado impera. Se, por um lado, a maioria dos moradores estão a ser realojados em habitações privadas, sendo a contribuição da câmara a prazo, por outro, nos casos em que a habitação social é acionada, significa o desalojamento de quem lá vivia.

Assim, não nos iludimos: só a resistência organizada das assembleias de moradores, manifs, entrevistas, participações nas assembleias camarárias, denúncia constante nas redes sociais, num esforço permanente para manter o 2.º Torrão nas mentes de todas permitiram este desfecho. Fica nítido que apesar da brutal desigualdade de forças, resistir é sempre o caminho para nos fazermos valer dos nossos direitos na sociedade capitalista voraz.

O Em Luta continua atento e solidário com a luta dos moradores em resistência, sabemos que sem expropriar os imóveis vazios que só servem para especular aumentando o preço geral das casas não se combate esta crise! Sabemos que sem controlo dos preços da habitação indexados ao custo de vida, não se combate esta crise! Sabemos que sem reforçar seriamente a oferta de habitação pública não se combate esta crise! E acima de tudo, sabemos que só com luta árdua podemos barrar todos os despejos!

António Tonga

Texto originalmente publicado no jornal Em Luta, n.º 11