No diário de quarentena publicamos o relato anónimo de uma trabalhadora da Groundforce. Após o fecho das escolas em Portugal, C. passou a ficar em casa para cuidar das filhas e descreve-nos como a acumulação de tarefas domésticas e a falta de perspetivas estão a sobrecarregar as mulheres em quarentena.
“Também eu sou funcionária da GF, mãe, doméstica, esposa.
Hoje sou, para além de trabalhadora, professora, educadora, artista, gestora, médica, advogada e que mais profissões se avizinharem.
Sou mãe, mas não sou perfeita!
Como mãe, o melhor trabalho do mundo! Contudo, também o mais exigente. Sem descanso quer física quer psicologicamente.
Sou mãe de duas meninas uma com 5 e outra com 6 anos que ainda dependem muito de um adulto.
Depois da notícia de que o COVID-19 chegara a Portugal e que as escolas seriam encerradas, achei que tinha sorte, por ser mãe! Assim não teria de enfrentar a loucura, o frenesim de passageiros que todos os grandes pensadores/governadores/gestores do país se tinham esquecido no aeroporto de Lisboa.
Ainda trabalhei o fim-de-semana, com uma fila de passageiros monstruosa no balcão da Tap, ainda se fez um voo de lazer para Punta Cana com 70 passageiros, ainda atendi casais com crianças para os Açores em férias. Penso que ninguém acreditava que era a sério. A Operação de aviação, fora alguns voos cancelados, parecia o mais normal possível.
Vivemos para os filhos, esquecemo-nos de nós – agora ainda mais – e quem pensa que por estarmos em casa teríamos muito mais tempo para lhes dedicar, enganou-se, pois as tarefas e as rotinas do dia-a-dia fechados em casa não nos dão o tempo necessário para olharmos só para eles. Ou serei apenas eu que não me consigo organizar?
Em casa ouvimos chamar por nós 100x por dia. Nesta quarentena, a fome dá de hora a hora e ouvimos as vozinhas melodiosas a perguntar constantemente: “Já é hora de comer? Ainda não lanchámos! Quero comer alguma coisa.”
Vai brincar, vai desenhar, vamos fazer um jogo, queres ver televisão são as perguntas do dia quando o aborrecimento da falta de atenção começa a pairar. Tenho-as deixado em auto gestão para conseguir fazer um pouco de tudo. Noutro tempo seria considerado negligência, hoje não sei o que consideram, mas o que é facto é que o tempo passa a voar.
Mas para onde vai então o tempo que gastamos nas deslocações de e para a escola, de e para o trabalho, se calhar não era tanto quanto isso, e agora em casa traduz-se em nada, dando lugar a uma ou outra qualquer tarefa necessária para se conseguir sobreviver.
Entretanto, no sentido de “ajudar” as famílias, o Ministério de Educação, ou as escolas e agrupamentos, lembraram-se de adicionar um pouco mais de pressão para justificar o seu trabalho e não verem os seus salários diminuídos.
Agora recebemos e-mails e temos grupos de WhatsApp com distribuição contínua de trabalhos para as crianças. Talvez funcione com as crianças acima dos 12 anos de idade, ou talvez não! Para as minhas, de 5 e 6 anos, é apenas mais uma pressão que dispensava. Agora para além de tudo o que existe para fazer, ainda tenho que me organizar de forma a arranjar tempo para ler e-mails e 1000 mensagens de WhatsApp para conseguir que elas correspondam aos trabalhos propostos.
Passo um dia de folga a pedir para se calçarem, para arrumarem, para me ajudarem, para comerem, para se sentarem à mesa, para desenharem, para fazerem o trabalho que a educadora propôs, espero e desespero, já tenho vontade de chorar, não tenho vergonha de dizer.
Para além disso, o marido veio para casa dispensado, sem vencimento, por isso eu tive que voltar ao trabalho, os rendimentos que já não eram muitos agora serão menos, por isso alguém tem de trabalhar.
Para além da pressão do tempo, tenho a pressão económica, tenho a pressão profissional e a depressão inevitável, mas não vou parar, porque sou mãe.
Em dias normais, com as crianças na escola, após um dia de trabalho teria a possibilidade de respirar, de me sentar, de sonhar, por um minuto que fosse…hoje, em quarentena, tenho que entrar e acenar, despir-me e lavar-me colocar a roupa a lavar e só depois me apresentar e admirar a família, cumprimentar com o olhar e com palavras, dois minutos passados e já estou de novo a organizar e a realizar as tarefas que não podem esperar.
De novo oiço chamar mãe 100x e as vozinhas melodiosas a apregoar a saudade, a fome, a carência de atenção. E carrego comigo a culpa de não conseguir simplesmente estar, simplesmente não errar, simplesmente querer estar só, nem que fosse por um minuto apenas e não ter.
Sei que talvez possa ser considerado egoísmo, mas eu sou mãe, não sou perfeita. Apesar de tudo, tenho sentimentos, os meus próprios sentimentos, e tenho o cansaço de ter trabalhado, de não ter parado, de não ter conseguido, de ter feito e não ter feito, de ter organizado e não ter conseguido organizar, de ter estado sem estar, de ter passado pelo presente sem o pressentir, de ter deixado o passado vazio e de não conseguir ver futuro.
E como em tudo na vida, à medida que os dias passam, mais se vai conseguindo alcançar, sempre em luta pelo melhor, sempre sem desistir!
Mas vai tudo correr bem, e eu sei que ultrapassarei esta aflição, assim como muitos de nós. Para já, vou tirando partido, ou o melhor partido, do que esta situação nos traz, que é sem dúvida continuar a (sobre)viver, e ser mãe, o melhor trabalho do mundo, contudo o mais exigente!”
—- Envia-nos também o seu relato. Exemplos de organização dos trabalhadores nos locais de trabalhos, nos bairros, exemplo de abusos dos patrões que colocam em risco a vida das pessoas. —