O mundo – da China aos Estados Unidos, passando pela “velha” Europa – está a enfrentar uma pandemia global e a reunião do Conselho Europeu terminou com os presidentes italiano e espanhol a levantarem-se da mesa, o presidente português a dizer que as palavras do representante holandês eram “repugnantes” e as decisões a serem adiadas para outra reunião, dentro de 15 dias.
15 dias! Enquanto as pessoas continuam a ficar doentes em todos os países, a União Europeia (UE) decide adiar as decisões do Conselho da Europa.
O que discutiam para que tivessem que adiar as decisões? Como coordenar os esforços para enfrentar a pandemia? Como fazer com que os holandeses possam ter acesso aos respiradores de que parecem precisar? Como os países menos afetados ajudam aos mais afetados, com camas e outros meios? Como colocar a poderosíssima indústria farmacêutica europeia a trabalhar simultaneamente na vacina e nos remédios? Como colocar a poderosíssima indústria da saúde europeia, os hospitais e as demais ferramentas ao serviço do combate à pandemia? Como financiar um plano de emergência social?
Quero dizer, adotar medidas coordenadas para enfrentar a pandemia, medidas que não podem esperar 15 dias, pois as pessoas ficam doentes e morrem. Não se pode dizer ao coronavírus que espere “15 dias para infetar” porque Merkel, Sanchez, Conte, Macron e os demais não estão de acordo em relação a…. não se sabe o quê.
Ou sabemos? Porque o ponto da discórdia foram os chamados “Eurobonds” propostos pela Itália, Espanha e França (agora rebatizados como “coronabonds”), ou seja, a emissão de títulos de dívida pública para captar financiamento no mercado por causa da crise que o coronavírus está a gerar; quer dizer arrecadar fundos para a UE de maneira coordenada. A Alemanha, a Holanda (esta de forma muito xenófoba) e a Finlândia deram o habitual não.
Para estas situações, disseram, existe o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEDE), que pode dar até 400 mil milhões de euros a Itália e a Espanha. Além disso, abriram a mão para que os Estados rompam a sacrossanta disciplina orçamentária que serviu para desmontar o sistema de saúde em toda a Europa, os famosos 3% de deficit (que não eram realmente 3%, pois com alguns mecanismos contabilísticos ficava em 0,7%), podendo endividar-se para custearem o combate ao coronavírus.
Não discutiam a política de encerramento de fronteiras e de “salve-se quem puder” que já estão a aplicar. Discutiam aquilo que realmente os preocupa: as consequências que a chamada “crise do coronavírus” vai ter nas contas anuais dos bancos e empresas e como pagar estas perdas.
O confronto ocorre precisamente por esta razão. A Itália, Espanha e França dizem que, como não é uma crise provocada por gestões irresponsáveis, como foi a crise da dívida, que acabou em resgastes aos países e desmontagem dos serviços sociais, a UE deve atuar de forma coordenada, através dos eurobonds/coronabonds. A Alemanha, Holanda e Finlândia, pelo contrário, dizem que “cada um aguente a sua carga” e que se os três primeiros têm uma grande dívida pública, não tivessem sido esbanjadores.
À população, angustiada pela pandemia, não interessa se uns foram esbanjadores e os outros são uns criminosos calvinistas, como o Governo holandês, que deixa os idosos/as morrer em casa e não os contabiliza como “vítimas” do coronavírus.
A população pergunta o que a União Europeia vai fazer. Aquela UE que, supostamente, é o primeiro bloco económico do mundo, que se gaba de ter o melhor sistema de saúde pública do mundo face aos vendedores da saúde norte-americanos ou à ditadura chinesa. Não se, após a pandemia, o Banco Deustche, o Banco Santander, ou qualquer uma das empresas BV holandesas, vão ter perdas ou não; e como nós vamos todos pagar pela queda de seus lucros.
O adiamento da decisão sobre Eurobonds pelo Conselho da Europa nada mais é do que a demonstração do que é a União Europeia: um acordo entre negociantes a quem a saúde pública os preocupa exatamente o tempo que leva para fazer eleições. Depois de eleitos, passam a discutir o que é importante para eles. Uma União Europeia que não hesitou em esmagar a Grécia para encher os cofres dos bancos alemães e europeus em geral. Uma UE que aplicou políticas de austeridade e fez cortes, com reformas constitucionais e tudo mais, como a do artigo 135 da Constituição espanhola. Uma UE que impôs governos a Itália, ignorando as urnas.
O motivo é exatamente o mesmo de agora, e o mesmo que Trump defende, “que a economia não entre em crise”. Eles discutem virulentamente entre si, já que falam em nome do “IBEX-35” de cada Estado, das burguesias de cada Estado, que querem colocar-se na melhor posição inicial para que, após a crise da pandemia, hegemonizem o mercado europeu conhecido como UNIÃO EUROPEIA. Quem sair melhor dessa crise estará nas melhores condições para assumir a parte do mercado mundial deixado pelas outras grandes potências, lutando entre si com o mesmo objetivo.
No entanto, a população trabalhadora tem outras necessidades e outros interesses, e esses são opostos pelo vértice aos do “IBEX-35” dos Estados e dos seus Governos. A primeira preocupação é parar a pandemia, para que pare de infetar e matar. E para isso existem mecanismos tecnológicos e humanos suficientes na União Europeia. A Europa possui a mais poderosa indústria farmacêutica, o maior número de materiais de saúde do mundo, uma das mais importantes indústrias de saúde privada, além dos sistemas públicos próprios de cada Estado. Um Conselho da Europa verdadeiramente ao serviço das necessidades sociais deveria discutir como nacionalizar essas indústrias e disponibilizá-las para combater a pandemia.
A União Europeia possui uma indústria têxtil, química, alimentícia e informática (impressoras 3D) poderosa o suficiente para garantir recursos materiais (máscaras, respiradores, etc.) sem precisar de ir ao mercado – à China, para ser preciso – e pagá-los a preço de ouro. Com a nacionalização dessa indústria, não seria necessário emitir os Eurobonds da discórdia.
Obviamente, medidas deste tipo abririam outra discórdia, e não seria entre Governos, mas entre estes e a população trabalhadora que, seguindo o exemplo das greves italianas contra a incapacidade de o seu Governo tomar medidas reais e drásticas contra a pandemia, se mobilizará nas ruas contra eles.
Isto supõe outra União Europeia, não a do Tratado de Maastricht, neoliberal e capitalista, cuja espinha dorsal, não importa o que aconteça, é a defesa dos interesses das grandes multinacionais e dos bancos; supõe uma Europa dos trabalhadores/as e povos, que discuta e se coloque de acordo sobre como resolver problemas sociais, e não sobre como resolver as perdas de capitalistas e banqueiros.
Alguns, com boas intenções, dirão “Mas não podemos esperar por essas mudanças estruturais”, “Precisamos de combater a pandemia agora” e “Não “vamos trocar de cavalo no meio do rio“. “É utópico”, dirão outros.
Primeiro, os que nos fazem esperar por soluções são os que deixam o mercado tornar-se um funil para obter recursos: como o porta-voz do Governo diz: “os mercados estão saturados e temos que esperar”; a distribuição do material será “escalonada”. Não podemos esperar para fazer mudanças estruturais, mas podemos esperar que os mercados respondam?
Segundo, é utópico? É mais utópico esperar que aqueles que desmontaram os serviços sociais públicos agora resolvam o problema; é a raposa vigiando o galinheiro. Como pode a população trabalhadora esperar algo daqueles que passaram mais de 10 anos a destruir a única coisa que pode impedir uma pandemia como esta: um forte serviço público?
A sociedade é educada a esperar medidas dos governantes e agora que as “vacas magras” estão a chegar, eles dizem-nos, a “solução está nas suas mãos”, “confinem-se”, “fiquem em casa”, caso contrário, vão para à Delegacia, aos Carabineiros, à Guarda Civil, etc. Enquanto isso, confrontam-se não sobre como enfrentar a pandemia e a coordenação de medidas, mas sobre como resolver os problemas daqueles que não têm problemas, os que geraram os problemas: banqueiros e capitalistas.
Sim, é verdade, “a solução está nas nossas mãos”, não para confiar naqueles que fazem parte do problema, mas para lutar por medidas reais, eficazes e práticas para parar a pandemia. E se para isso é preciso enfrentar o mercado, substituindo-o pela nacionalização das empresas necessárias e pelo planeamento da economia, isso deve ser feito. Caso contrário, a cada adiamento dessas medidas ou “distribuições graduadas”, as pessoas morrerão.
Isso não é utópico. É a maneira de lutar por outro tipo de governo, um governo de trabalhadores/as de cada Estado, que não hesite em tomar as medidas necessárias, do confinamento à nacionalização, e coordená-las com o resto da Europa.
O que aconteceu no Conselho da Europa deve fazer-nos pensar sobre que Europa deve ser construída.