Estas Eleições Presidenciais estão marcadas pela situação drástica da pandemia em que nos encontramos e pela crescente crise económica e social. A nível eleitoral, André Ventura ganha peso e está a marcar os debates políticos mais mediáticos. Vendo este crescimento, muitos ativistas que, corretamente, repudiam o programa de Ventura estão pressionados a escolher pelo voto útil contra a extrema-direita. Compreendemos este sentimento, mas acreditamos ser importante analisar com mais profundidade o momento político que vivemos para assim entendermos a origem destes fenómenos e podermos combatê-los melhor.
O que marca estas Eleições Presidenciais?
O Governo não fez os investimentos necessários no SNS, nem a requisição dos hospitais privados. Tampouco investiu para tornar escolas e transportes mais seguros. Ao longo da pandemia, o Governo optou por ajudar empresas de lucros milionários, enquanto pequenos empresários penaram e inúmeros trabalhadores precários e independentes ficaram sem nenhum rendimento. O Governo não proibiu os despedimentos, e nada fez pelos trabalhadores que, fruto da flexibilização das leis laborais, mantida e até acentuada no anterior Governo da Geringonça, viram os seus contratos não renovados. Aumentou drasticamente em Portugal o número de famílias em situação de insegurança alimentar. Os problemas sociais são cada vez maiores e por isso aumenta a procura de alternativas frente a este Governo. E a denúncia, e mais do que denúncia, a resposta a estes problemas é que deveria orientar a disputa política destas eleições. Mas, para além de Marcelo, o que vemos é, por um lado, o discurso populista de Ventura, que só agrava estes problemas, e por outro, a fraca “oposição” de esquerda ao Governo.
Ventura cavalga o descontentamento com o sistema, com discurso populista e reforçando e alimentando-se no preconceito
O racismo, a misoginia, a xenofobia e a LGBTfobia são fenómenos do qual o sistema capitalista em Portugal sempre se alimentou. Às comunidades negras e ciganas, historicamente marginalizadas em bairros longe do centro, de serviços e de infraestruturas de apoio. A estas comunidades sempre foi legado um nível de vida abaixo da maioria da classe. Imigrantes no seu próprio país, são os mais representados nas profissões mais precárias e mais mal pagas. A sua juventude é encaminhada para o ensino profissionalizante e, posteriormente, para as fileiras do desemprego. Ventura ataca impiedosamente estas comunidades, bem como ataca as mulheres que se organizam para combater a violência e a desigualdade de género.
Além do discurso abertamente preconceituoso, Ventura representa um projeto de aprofundamento da retirada de direitos aos trabalhadores e de ataque às nossas liberdades democráticas. Quando ataca o 25 de Abril, ou defende até mesmo a criação de uma 4ª República, Ventura indica a sua disposição de atacar a liberdade de organização e os direitos democráticos dos trabalhadores. Longe de combater o sistema, Ventura é a sua expressão mais exacerbada.
Infelizmente, o espaço de oposição ao Governo acaba pelo programa repugnante de André Ventura, que não só tem sabido ocupar o palco que lhe tem sido dado, como o tem usado para se apresentar como o único “que não tem medo de enfrentar o sistema”.
Neste contexto, o que faz a “oposição” de esquerda?
Enquanto isso, o PCP e o Bloco de Esquerda, quando convém, fazem críticas a medidas pontuais do Governo, mas continuam a atuar em concertação com este. Na prática, não atuam como oposição, tampouco apresentam um projeto globalmente alternativo ao governo atual. No Parlamento, diferenciam-se pontualmente e, na arena da luta social, também não constroem a resistência.
O PCP é responsável pela imensa apatia da maioria dos sindicatos perante os despedimentos de milhares pelo país afora. Se, por um lado, passou a opor-se aos Estados de Emergência, por outro, a sua abstenção foi essencial à aprovação do Orçamento doEstado, que mais uma vez priorizou os interesses da banca em detrimento do SNS e de tantas necessidades dos trabalhadores. Tem tido por grande mote de campanha a defesa de uma Constituição que, se contém direitos que foram conquistados a duras penas pela luta dos trabalhadores no 25 de Abril, é também a que tem sido usada pelo Governo para legitimar os seus arbitrários Estados de Emergência.
O Bloco, por sua vez, quando o Governo começa a ser mais duramente cobrado pela gravidade da situação pandémica, começa a perguntar pela requisição dos hospitais privados, e “esquece-se” de que apoiou o Governo anterior, que levou o SNS à miséria e fez requisição civil contra a greve dos enfermeiros que cobravam melhores condições de trabalho. Diz que a presidência de Marcelo não vetou as alterações más às leis laborais, e nada diz sobre a responsabilidade da Geringonça sobre a precariedade laboral. Abstém-se sobre os Estados de Emergência – silenciosamente ajuda a aprová-los ao invés de denunciar a brutalidade policial arbitrária que eles têm legitimado nos bairros onde está a população pobre, negra e imigrante. Lembramos os enfrentamentos do Caso da Jamaika, bem como na Campanha por Outra Lei da Nacionalidade, em que os partidos ditos de esquerda, obrigados a escolher entre apoiar inequivocamente as comunidades em luta ou reforçar o seu compromisso com o sistema, escolheram sempre a segunda opção. Por um lado, branqueando a intervenção da Polícia na Jamaika, por outro, cozinhando uma alteração à Lei da Nacionalidade, à revelia do movimento que diziam apoiar, que mantém o peso discricionário da burocracia estatal na obtenção da cidadania portuguesa.
Estes partidos e os seus respetivos candidatos, João Ferreira e Marisa Matias, propõem como saída para os trabalhadores, nesta crise de dimensões históricas que estamos a enfrentar, pressionar o Governo do PS para pontuais medidas que aliviem os efeitos da crise para o lado dos trabalhadores, e continuar a concertar com ele.
Já Ana Gomes quer apresentar-se como uma outsider do PS, mas é parte integrante da sua estrutura e vários cargos políticos (veja-se, por exemplo, que é uma defensora de José Sócrates), tendo sido até 2019 deputada europeia por este partido. É uma defensora da Geringonça e, portanto, do modelo de migalhas sem mudanças estruturais.
Faz falta uma candidatura independente, dos trabalhadores, contra a austeridade e os despedimentos
Para disputar não só o voto mas, principalmente, as ideias dos trabalhadores, que estão a sentir na pele o resultado das medidas do Governo, há que apresentar-lhes uma alternativa de oposição independente do Governo e dos Patrões. Uma alternativa que coloque a defesa dos nossos postos de trabalho e direitos como prioridade inegociável, e que enfrente aqueles que querem vitimar a nossa classe – a começar pelo atual Governo – pois só assim teremos condições de enfrentar também a extrema-direita.
Esta esquerda parlamentar não é oposição ao que aí está e tem cumprido a tarefa de conter e domesticar o descontentamento que se expressa na luta social ou sindical – levando à desilusão de muitos trabalhadores, que deixam de confiar no sistema e nela. O combustível do crescimento da extrema-direita é o desgaste do próprio sistema, e o comprometimento destes partidos com ele não faz senão deixar este espaço aberto.
É preciso construir nas lutas uma alternativa dos trabalhadores ao Governo e à extrema-direita
É por isso que há que questionar se, nessas eleições, o voto crítico nas candidaturas da esquerda que se apresentam – nomeadamente em Ana Gomes (PS), João Ferreira (PCP) ou Marisa Matias (BE) – serve para parar o crescimento eleitoral de André Ventura.
As eleições aparentam ser uma oportunidade para o povo e os trabalhadores escolherem os rumos políticos do país no próximo período. No entanto, na democracia dos ricos, as opções são pré-definidas, o jogo tem cartas marcadas. Não existe espaço para a disputa por verdadeiras alternativas. Por isso, não podemos depositar nas urnas a expectativa de um futuro melhor. Tampouco acreditar que, votando, vamos combater o crescimento do discurso fascista. Se Ventura está a usar estas eleições para acumular forças e fazer crescer este discurso, sem dúvidas já fazendo cálculos para as próximas eleições, a nossa tarefa para estancar esse crescimento não é desde já votar num “menos mau”, na esperança de derrotá-lo na quantidade de votos. A nossa tarefa é preparar nas ruas o enfrentamento dos trabalhadores contra esse Governo, e construir nessas lutas uma alternativa política verdadeiramente dos trabalhadores, e que ocupe o espaço que hoje dá margem ao crescimento da extrema-direita.
É por isso que chamamos ao voto nulo nessas eleições presidenciais – mas, sobretudo, chamamos os ativistas que se preocupam com o crescimento da extrema-direita a organizarem, no próximo período, nos locais de trabalho e nos bairros, a mobilização em defesa dos postos de trabalho, das nossas condições de vida, contra o racismo e a xenofobia, e a somarem-se à construção de uma alternativa independente e revolucionária dos trabalhadores para enfrentar a crise capitalista.
António Tonga e Marina Peres