Nacional Raça & Classe

Demolições, racismo e segregação nas periferias: uma conversa franca com o PCP

A crise da habitação agrava-se cada vez mais, e a realidade de salários que não chegam para pagar a renda atinge setores cada vez mais largos da população. Como consequência, como seria de esperar, cada vez mais famílias, sem ter alternativas, se veem obrigadas a recorrer a casas autoconstruídas.

A resposta das autarquias por toda a Área Metropolitana de Lisboa à crise habitacional, ao invés de reabilitar os parques habitacionais municipais e de investir em habitação pública, parece ser somente uma: despejos sem alternativa.

Diante deste cenário catastrófico, antes de mais, solidarizamo-nos com as pessoas que têm enfrentado estas situações desesperadoras, e com os movimentos que com elas têm resistido. Exigimos a imediata suspensão das demolições sem alternativa!

Mas é necessária uma discussão mais profunda à esquerda sobre a política das autarquias nestas situações.

Do Talude a Santa Marta de Corroios: demolições e despejos são a política de todas as Câmaras Municipais

Infelizmente, as demolições ocorridas nos últimos meses mostram que a política dos despejos sem alternativa é transversal a todo o espectro político: de Santa Iria da Azóia e do Talude (Câmara de Loures, PS), passando pelo Penajóia (Câmara de Almada, PS) e até Santa Marta de Corroios (Câmara do Seixal, PCP), ocorrem da mesma forma em todos os municípios: sem aviso prévio, sem direitos e garantias, completamente à margem da lei, e levadas a cabo com muita brutalidade policial e assédio aos moradores. Assim foi também no 2° Torrão (Câmara de Almada, PS) em 2022/23 e na Jamaika (Câmara do Seixal, PCP) em 2023/24.

A distância entre a atuação do PCP nos movimentos sociais e a sua política nas autarquias

No último período, o PCP em atuado junto dos movimentos sociais nas lutas pelo direito à habitação. Importantes militantes e aliados desta organização têm corretamente construído movimentos como o Vida Justa e o Porta-a-Porta, que corretamente têm dado voz à luta contra a segregação racial, exclusão e marginalização de várias comunidades periféricas.

Recentemente, perante diversos processos de demolições, o movimento Vida Justa pediu a intervenção do presidente da república, Marcelo Rebelo de Sousa, pela suspensão dos despejos dos bairros autoconstruídos – uma medida com a qual concordamos integralmente e que é para ontem.

No entanto, a atuação do PCP junto desses movimentos sociais não encontra coerência com a atuação do partido nos locais em que este tem o poder político nas mãos. Esta medida – básica e urgente – de suspensão das demolições sem alternativas, defendida pelos movimentos sociais que o partido compõe, não é cumprida pelas Câmaras dirigidas pelo próprio PCP. 

A atuação do PCP no bairro da Jamaika, onde a Câmara fazia verdadeiros cercos policiais ao bairro sempre que havia demolições, não foi uma exceção. Este partido, que foi o que mais tempo governou a Margem Sul do Tejo desde o 25 de Abril, pratica nos bairros da periferia desta área a mesma segregação que vemos em todas as outras: brutalidade policial, despejos sem alternativa, desinvestimento em infraestruturas, marginalização nas escolas. Também fez o mesmo quando foi poder na Amadora, em Vila Franca de Xira e em Loures. 

Enquanto poder, o PCP não se diferenciou na prática do projeto de cidade racista da burguesia. Pelo contrário, foi um dos responsáveis pela sua execução, e inclusivamente a implementação do PER que, com os realojamentos, empurrou as populações pobres, racializadas e imigrantes para bairros que perpetuaram a segregação social e racial, tornando-se nas atuais “Zonas Urbanas Sensíveis”. Preferiu manter o seu lugar no sistema em vez de organizar as populações imigrantes, negras e ciganas, para que possam lutar e viver em pé de igualdade com toda a classe trabalhadora.

Esta política habitacional do PCP nas últimas décadas, e a ausência de um balanço do papel que cumpriu na implementação desse projeto de cidade segregacionista dos ricos, explica-se não apenas pela atitude de colaboração com a burguesia que assume em posições de poder, como demonstrou em vários momentos históricos, mas também pela sua (in)compreensão sobre o tema do racismo.

O PCP e a questão do racismo em Portugal

Em junho de 2020, quando por todo o mundo explodiu, a partir dos EUA, a luta por justiça para George Floyd, também em Lisboa houve uma manifestação histórica contra a brutalidade policial e a violência racista. O protesto ganhou força em Portugal como continuidade da luta por justiça para Luís Giovani e Cláudia Simões.

Nesse momento importantíssimo, em que o tema da violência policial racista polarizava o país e o mundo, Jerónimo de Sousa, enquanto secretário-geral do PCP, foi à imprensa dizer: “Eu não digo que não exista aqui ou acolá preconceito e que manifestações de racismo não existam. Mas transformar isto na grande questão nacional, transformar isto com uma verdade imensa, nós discordamos.”

Desde então, e em contradição com o papel desempenhado por militantes e simpatizantes do PCP nas lutas contra casos de brutalidade policial racista, como na organização do protesto por justiça para Odair Moniz, o partido nunca desmentiu ou fez um balanço sobre a forma racista como desvaloriza a realidade das pessoas negras, imigrantes e ciganas da periferia e zonas pobres.

Estas posições são reveladoras de uma política que não vê o papel do racismo na  realidade portuguesa, e que perpetua a naturalização da violência que atinge as comunidades racializadas e imigrantes em Portugal. Reforça, assim, o complexo de superioridade pós-colonial, que nunca desapareceu e que agora vive o seu momento mais pujante desde a revolução do 25 de abril, cavalgado pela extrema-direita.

O PCP, além de ser uma força política nos movimentos sociais pela habitação e contra a brutalidade policial, é também o partido com mais peso nos sindicatos em Portugal. Por isso, tem a obrigação de mobilizar o conjunto da classe trabalhadora, os seus sindicatos e federações, dar a batalha política necessária contra o racismo dentro da classe trabalhadora e fazer avançar a consciência contra “o patriotismo” de uma nação presa ao seu passado colonizador.

Um debate necessário para avançar na unidade das lutas

Estas são pautas centrais para o futuro da luta de classes e para a construção da unidade das lutas, que passará sempre pela discussão aberta e franca sobre as tarefas que se colocam perante a classe trabalhadora nas suas batalhas contra a exploração e opressão burguesas. Nesse sentido, queremos pensá-las com todos os que se têm dedicado a lutar para organizar a resistência periférica face a crise e à ofensiva dos sucessivos governos.

É urgente exigir a efetivação da suspensão das demolições sem alternativa, a começar pela autarquia que o PCP dirige atualmente – a Câmara do Seixal, que continua a efetuar demolições no bairro de Santa Marta de Corroios.

Para acabar realmente com os despejos sem alternativa e a discriminação representada pela política das “ZUS”, é preciso construir uma política de habitação completamente diferente do projeto racista e segregacionista que foi implementado nas últimas décadas. E essa política só poderá ser construída a partir do respeito à autoorganização das comunidades, inclusive colocando a possibilidade de urbanizar e regularizar os bairros e moradias, ao invés de os criminalizar com violência policial e assédio para impôr despejos sem alternativa.

É urgente defender:

Fim das sem alternativa! Proibição dos despejos, já!

Regulação do mercado de arrendamento! Controlo público dos preços da habitação! Preços vinculados ao salário mínimo nacional!

Um plano de habitação pública com a expropriação das casas vazias e de fundos de investimentos!

Fim das Zonas Urbanas Sensíveis! Basta de segregação, violência policial e criminalização dos bairros e periferias!

Marina Peres e António Tonga