Nacional

PCP e o Partido Bolchevique: dois projetos opostos

Não deixa de ter algo de enternecedor o modo como a comunicação social, acompanhada por alguns dos nossos comentadores políticos, se associaram aos 100 anos do PCP. Não faltou quem comparasse o PCP aos bolchevistas russos e Álvaro Cunhal ao Lenine português. Cem anos são, de facto, uma idade rara para um partido, mas nos aniversários, mesmo que centenários, a história não deve ser substituída pela hagiografia.

Sendo, supostamente, referências do PCP a Revolução Russa e os bolcheviques, pode ser tentadora a comparação deste partido com os bolcheviques e de Cunhal com Lenine. Afinal, ambos regressam do exílio, o primeiro poucos dias antes do início do processo revolucionário, o segundo alguns meses antes da tomada de poder pelo sovietes russos. De ambos existem registos do discurso de chegada feito em cima de um blindado. Uma tentadora analogia, sem dúvida, mas que não passa de um devaneio histórico. Mas vamos aos factos.

A política de independência de classe para tomar o poder…

Quando o padre Gapone vai a Zurique propor a Lenine um amplo acordo político de urgência pelo derrube da monarquia russa, Lenine responde-lhe que até poderiam golpear juntos, mas que continuariam a marchar separados. De regresso à Rússia, em 1917, Lenine recusa qualquer tipo de apoio e de participação no governo de Kerenski. A orientação política dos bolcheviques passa a ser, como se sabe, a de que os ministros socialistas devem romper a colaboração com os ministros burgueses, “Todo o poder aos sovietes”. Em 1922, já gravemente doente, Lenine é o primeiro a alertar o partido bolchevique para o perigo de, se nada fosse feito, o governo dos sovietes ser substituído pela ditadura da burocracia, que já ameaçava poder vir a dominar o partido bolchevique.

… e a política de aliança de classes do PCP

Ao contrário de Lenine e dos bolcheviques, a política do PCP sempre esteve orientada pela sua participação e/ou apoio a governo burgueses, que o PCP classifica como  “política patriótica e de esquerda”. Onde Lenine falava de proletariado, o PCP fala de uma “ampla frente social de luta”. Onde Lenine falava em nenhum apoio a governos burgueses (mesmo que ditos democráticos), o PCP fala em participar em governos com “setores patrióticos, democráticos e antimonopolistas” (bem expresso nas Teses do XXI congresso). Na verdade, o PCP há muito que abandonou o leninismo e com ele a independência política da classe trabalhadora que o leninismo deixou como legado a todos os revolucionários. 

Frentes populares aplicadas a Portugal

O PCP sempre manteve (e por certo continuará a manter) um muito oportuno silêncio sobre as suas ligações internacionais. Percebe-se, porque afinal 100 anos de existência dão origem a muito para explicar. Sabemos hoje que o PCP acompanhou e participou nos congressos do Comintern (Internacional Comunista). Foi no VII congresso, em 1935, que os então dirigentes do PCP aderiram à política das “frentes amplas contra o fascismo” que Estaline não demoraria a aplicar em França e, pouco depois, na Guerra Civil Espanhola, com consequências devastadoras para os trabalhadores destes países. Cunhal, acabado de chegar a secretário-geral do PCP e corrigido o “desvio de direita”, vai  aplicar a mesma linha política nas teses do congresso do PCP de 1965. Posteriormente publicadas com o título Rumo à Vitória, as teses previam a queda do fascismo pela revolução “democrática e nacional” e reivindicavam participação do PCP num futuro Governo Provisório, governo este que teria a participação dos trabalhadores e, claro, de todos os “portugueses honrados”. Era a colaboração de classes estalinista na sua versão cunhalista.

A burocracia e o terror estalinista

Mas a ligação entre o PCP e o Comintern não se fica apenas pela aplicação política das teses frentistas saídas do VII Congresso, em 1935. Onde Lenine falava em combater a burocracia, a história do PCP mostra-nos o apoio e a justificação política dos atos mais criminosos da burocracia estalinista.

Durante a Guerra Civil Espanhola, Cunhal e vários quadros do partido são deslocados para Espanha, onde lhes são atribuídas tarefas de “investigação de atividades fascistas”. No período da guerra civil em Espanha, estas “investigações ” eram apenas a justificação com a qual o NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos) prendia e, em alguns casos, eliminava fisicamente todos aqueles que não aceitavam a política imposta por Estaline. O testemunho foi-nos deixado por George Orwell nas suas memórias:

“Quando cheguei ao hotel minha mulher estava sentada no salão de espera. Levantou-se caminhou para mim (…) e murmurou ao meu ouvido:

– Dê o fora.

– O quê?

– Saia daqui imediatamente. Precisa sair agora mesmo.

– Porquê? O que está dizendo?

Ela já me pegara pelo braço e seguia comigo levando-me para a saída. Ao pé da escada um dos empregados do hotel membro do POUM (sem a gerência saber, ao que presumo) saiu furtivamente do elevador e me disse, em inglês estropiado, para sair dali. Até então eu não compreendera o que acontecia.

– De que diabo estão falando?

-Não soube? O POUM foi extinto, eles tomaram os edifícios e praticamente estão todos presos. Dizem que já começaram a fuzilar alguns.

– Então era isso (…) Naqueles dia intermédios deve ter havido um bom número de homens que morreram sem saber que os jornais na retaguarda os chamavam de fascistas.

Não se tratava de uma batida para apanhar criminosos, apenas de um reinado de terror. Eu não era culpado de qualquer ato definido, mas de trotskismo. O facto de que servira na milícia do POUM era mais do que suficiente para me levar à prisão.“

Pelo menos desde os primeiros anos da década de 30 que o PCP envia quadros para Moscovo, colocando-os na Escola Internacional Lenine, onde devem aprender a “construção do socialismo russo”. Como estudantes do “socialismo” estalinista tiveram contato com a realidade das purgas e das perseguições políticas que durante esta década atingiram toda a sociedade russa. Dado que visitavam as grandes obras, não tiveram como desconhecer a utilização extensiva de mão de obra de prisioneiros dos Gulags. Assistiram a julgamentos de trabalhadores nas suas fábricas que, normalmente, terminavam em condenações a trabalhos forçados. Terminada a formação podiam ser destacados para apoiar a GPU (Diretório Político Unificado do Estado) e, posteriormente, a NKVD na criação de redes de controlo no interior dos partidos nacionais de opositores de esquerda ao estalinismo. A escola leninista de Moscovo garantia assim a formação dos quadros que iriam cimentar a fidelidade dos Partidos Comunistas por todo o mundo à burocracia estalinista na Rússia.

A subida do nazismo e o pacto Estaline-Hitler

Em agosto de 1939, a Alemanha nazi e URSS estalinista assinam um pacto de não-agressão que marca o início da II Guerra Mundial. À parte pública deste acordo juntava-se uma parte secreta  que definia as condições de partilha da Polónia entre Hitler e Estaline. Seriam necessárias as explicações mais inimagináveis para justificar o impensável. Aqueles que nos últimos anos tinham perseguido como espiões fascistas tudo quanto era oposição de esquerda ao estalinismo surgiam agora como quase aliados do nazismo. Mas para o PCP acabava “de ser vibrado um duro golpe ao fascismo internacional. A arma com que se vibrou esse golpe foi o pacto de não-agressão germano-soviético”. A fidelidade acrítica está sempre a um pequeno passo do ridículo.

PCP como herdeiro de Estaline, e não de Lenine

A política e o percurso do PCP nestes últimos 100 anos mostram que este partido representa em Portugal o legado da contrarrevolução dirigida por uma casta burocrática liderada por Estaline na URSS e que retirou aos trabalhadores o poder que estes tinham conquistado na revolução de 1917. Apesar de, normalmente, se identificar o PCP com o lenismo e o legado bolchevique, a herança revolucionária do partido bolchevique de Lenin foi continuada por Trotsky e todos os velhos bolcheviques perseguidos e assassinados pelo regime usurpador de Estaline. Como os exemplos aqui referidos procuraram mostrar, as referências do PCP são as do caminho seguido por Estaline, em tudo oposto ao de Lenin e à sua perspetiva revolucionária. Esse é o único ponto de partida possível para entender a política do PCP nestes 100 anos.

José Monteiro

Texto publicado original no jornal Em Luta, N.º 27 (março 2021)