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Jornal “O Negro”: um marco do antirracismo em Portugal

Está disponível para download a reedição de um jornal pioneiro no combate ao racismo em Portugal, editado pela primeira vez em 1911.

«A nossa escravidão é secular e em virtude dela temos sofrido todos os vexames e tiranias e em virtude dela temos sido o alvo aonde a inveja, o crime e o insulto têm crivado impunemente as suas setas venenosas». Estas palavras, que refletem a condição das pessoas negras em Portugal e no mundo, abrem o primeiro artigo editado no jornal O Negro, o primeiro de uma série de onze títulos da imprensa negra, publicados entre 1911 e 1933. 

O Negro saiu para a rua pela primeira vez há 110 anos a 9 de março e os seus três números foram agora reeditados num trabalho da autoria de Cristina Roldão, José Augusto Pereira, Pedro Varela e Falas Afrikanas. O órgão oficial da Associação dos Estudantes Negros foi um dos jornais que deu voz a uma geração de ativistas africanos e afrodescendentes a residir em Lisboa, que encetou um combate contra o racismo e ensaiou um questionamento do colonialismo vigente. 

O seu surgimento ocorreu apenas cinco meses após a proclamação da República, a 5 de outubro de 1910, um regime que hasteou a bandeira da liberdade e da igualdade, ao mesmo tempo que deu continuidade a uma ideologia colonial herdada da monarquia e que se traduziu na ocupação militar dos territórios africanos e na submissão violenta das suas populações. O ocaso desta geração de ativistas negros aconteceu com a edição do seu último título de imprensa, o África, iniciada em 1933, o ano da implantação do regime fascista conhecido como Estado Novo, sete anos depois do derrube da República, a 28 de maio de 1926, com a instauração da Ditadura Militar. 

Ao longo de três números, O Negro ergueu-se contra «iniquidades, opressões e tiranias», exigiu da 1.ª República o fim da desigualdade racial, reivindicou uma África que fosse «propriedade social dos africanos» e não retalhada pelas nações e pessoas que a conquistaram, roubaram e escravizaram. Acompanhará de perto o dia a dia nos territórios ocupados por Portugal em África e, partindo do caso de Moçambique, denuncia veementemente a falta de investimento na educação «votada ao mais infame abandono». As lutas dos trabalhadores em França serão igualmente destacadas. 

O jornal O Negro será uma trincheira do combate ao racismo. Logo no primeiro número, apontará o dedo aos atos de discriminação que acontecem no sistema de ensino português visando os estudantes negros e exulta os levantes antirracistas no mundo, como foi o caso da revolta da Chibata, que por esses dias deflagrou no Brasil. 

O jornal O Negro, e a organização de que foi porta-voz, constituiu o momento inaugural de um movimento negro diverso quanto às suas organizações, cuja intervenção se estendeu do associativismo à arena partidária, passando pelas manifestações culturais. As mulheres cumpriram um papel de relevo neste movimento, marcando presença nos elencos diretivos ou criando e dirigindo as suas próprias estruturas. Para além da Associação dos Estudantes Negros, destacam-se  Junta de Defesa dos Direitos de África, a Liga Africana, o Partido Nacional Africano, a Liga das Mulheres Africanas, o Grémio “Ké-Aflikana” e o Movimento Nacionalista Africano. Quanto aos títulos de imprensa surgidos durante esse período, sublinhe-se, entre outros, A Voz D’Africa, Tribuna D’Africa, O Eco D’Africa, Portugal Novo, A Nova Pátria, O Protesto Indígena, Correio De Africa, A Mocidade Africana, Africa Magazine e Africa

No que toca às figuras desta geração, é forçoso referir o médico e cientista José de Magalhães, o advogado João de Castro, a pianista e professora de música Georgina Ribas bem como o jornalista e escritor Mário Domingos. José de Magalhães e João de Castro, eleitos deputados no decurso da 1.ª República, irão corporizar dois projetos políticos distintos no quadro das duas tendências dominantes no pan-africanismo. Estas e outras personalidades deste movimento negro foram protagonistas da construção e consolidação do pan-africanismo surgida nas duas margens do Atlântico no seio da diáspora africana. Inscreveram igualmente o seu nome na história de Portugal, apesar do apagamento a que foram votados por uma cultura hegemónica moldada pelo racismo estrutural.

A reedição do jornal O Negro 110 anos depois vem sublinhar a persistência do racismo estrutural ao longo dos tempos, apesar das profundas mudanças sociais e políticas entretanto ocorridas em Portugal e em África desde o início do século XX. Entre estas alterações, conta-se, certamente, a conquista das independências das colónias portuguesas em África, cujas raízes se encontram na oposição dos africanos à ocupação militar ocorrida na passagem para o século XX e que desembocou nas guerras de libertação nacional iniciadas nos anos 60. 

Evocar o jornal O Negro e o momento inicial num ativismo pioneiro que perdurou durante mais de duas décadas mostra que a luta contra o racismo em Portugal não é de agora. Implica também conceber e colocar em práticas formas de luta contra o racismo que visem a destruição do capitalismo, que afirmem a independência face ao estado e aos patrões e que forjem a união de trabalhadores brancos e negros contra a discriminação e pela construção de uma nova sociedade nova.

José Pereira