Os resultados eleitorais e os desafios para os trabalhadores
Os resultados das eleições legislativas ainda estão quentes e já é grande a agitação que estão a trazer. Percebemos o momento de introspeção presente entre boa parte dos ativistas, dirigentes sindicais e militantes políticos, mas sabemos também que há espaço para virar o jogo assim saibamos refletir sobre como chegamos aqui e de que forma podemos avançar. Por que se perdeu o ímpeto do movimento social dos anos da Troika? O que foi feito desde então que impediu as organizações de trabalhadores de terem maior protagonismo na realidade? Que espaço foi dado ao longo dos anos para que ideologias alheias aos interesses dos trabalhadores, como o racismo, o machismo e a xenofobia, tenham penetrado com tanta força nos locais de trabalho e também entre os mais jovens? O que fazer daqui para a frente?
Os resultados
Apesar dos escândalos da Spinumviva que envolveram Montenegro e que levaram à sua queda, a candidatura da AD sai reforçada. A extrema-direita – Chega e IL – aumenta o seu peso parlamentar.
O grande derrotado da noite eleitoral é o Partido Socialista com uma perda apenas comparável com os resultados de 1987. A esquerda parlamentar sofre também uma pesada derrota. O PCP e o Bloco de Esquerda ficam com o pior resultado eleitoral da sua história, reduzindo-se a 4 deputados.
O único à esquerda que aumenta o seu espaço eleitoral é o Livre.
Importa realçar que o Chega obtém um crescimento importante, sendo em alguns concelhos o partido mais votado, em regiões historicamente com um peso importante da esquerda e de fortes concentrações de trabalhadores.
A instabilidade política e a crise de regime como pano de fundo
Pensamos que estes resultados merecem reflexão detalhada, mas o primeiro elemento que sobressai é, apesar do voto de reforço na AD expressar um desejo de estabilidade de uma parte dos eleitores, a manutenção de uma instabilidade no parlamento. Esta, longe de ser uma coincidência, corresponde a uma crise que vive a democracia herdeira da derrota da revolução de 1974. Uma democracia que, apesar dos avanços pós ditadura, tem representado para as gerações seguintes uma deterioração das condições de vida e trabalho.
Esta crise de regime reflete-se na destruição do bipartidarismo, como garante de estabilidade desta democracia. São também elementos desta crise a hecatombe do PS, associado aos vícios da política burguesa no passado recente, com os processos de corrupção, as esperanças frustradas depois de anos de ataques da direita de Passos Coelho, o enfrentamento em processos de luta concretos ocorridos nos anos seguintes que não tiveram acolhimento nem do governo, nem das forças à esquerda que o sustentava. Reflete-se de forma objetiva nas votações, pela perda de votos no conjunto dos partidos mais identificados com os governos no país desde o fim da ditadura: PSD, PS e CDS/PP. Se no final da primeira década do século, nas legislativas de 2009, juntos estes partidos chegavam aos 4,2 milhões de votos, hoje reúnem 1 milhão de votos a menos.
O processo que se viveu aquando dos anos da Troika, no qual às mãos da direita empresas públicas estratégicas, os serviços públicos e os direitos dos trabalhadores foram rifados para salvar os bancos, deixou uma marca incontornável na experiência dos trabalhadores e da juventude com esta “democracia”. A soberania do país ficou ainda mais em causa, com orçamentos a serem decididos pelo BCE, o FMI e a Comissão Europeia. Essa experiência abriu um espaço para a construção de uma alternativa que foi inicialmente ocupado pelas forças da esquerda parlamentar. Esse espaço inicial começou a reduzir-se, no entanto, quando BE e PCP quiseram canalizar todo este processo para as eleições de 2015 – e fechou-se, finalmente, com os governos da Geringonça, que mantiveram no global o padrão de exploração que fora imposto pela Troika, mantendo todos os compromissos com a UE.
Esta crise do regime, que não se resolveu e se aprofunda cada vez mais, é o contexto que permitiu ao Chega, que se apresenta como uma alternativa anti-sistema – embora não o seja – crescer e transformar-se em pouco tempo numa das principais forças políticas no país.
Qual o governo que agora surge?
Antes de nos debruçarmos sobre as reflexões a que estamos obrigados, importa olharmos para que governo sai deste processo eleitoral. É indiscutível que a AD, PSD e CDS-PP, sai reforçada, embora com muitas bombas-relógio nos braços. Desde logo porque mantém-se um parlamento dividido, sem maioria absoluta, diante de uma situação política e económica internacional muito instável. Com uma extrema-direita parlamentar em crescendo e com sede de poder, há, portanto, uma forte probabilidade deste governo não chegar aos 4 anos de mandato.
Apesar da instabilidade e das hipóteses de não chegar ao fim do mandato, para os trabalhadores este governo e este parlamento representam uma ameaça aos seus direitos. Um parlamento com um peso importante da direita e da extrema-direita não auguram nada de bom quanto a direitos sociais, laborais, ou mesmo quanto a direitos democráticos.
Os imigrantes já o sentem na pele com as maiores dificuldades na renovação de documentos, assim como na ameaça crescente de um processo de deportações, a par com um crescimento do ódio e da violência xenófoba. Tudo proveniente já do governo da AD sem a ajuda do Chega, embora com o seu apoio.
Ao mesmo tempo, nos serviços públicos não há diferenças significativas nos programas dos diferentes partidos da direita quanto a um papel crescente do setor privado como provedor de serviços de utilidade pública, pondo os impostos dos trabalhadores a pagar o lucro das empresas privadas de saúde e de educação. Na segurança social, a proposta de variar as fontes de financiamento vai no mesmo sentido de abrir caminho aos fundos privados de pensões.
No mundo do trabalho, o avanço da flexibilidade (horários de trabalho, bancos de horas, etc), a continuidade da destruição da contratação coletiva, bem como a manutenção e proliferação do flagelo da subcontratação e do trabalho temporário, continuarão a ser ameaças sobre os trabalhadores.
Extrema-direita e a disputa pela consciência dos trabalhadores
A par dos ataques que poderão vir da comunhão dos programas das direitas, é já uma realidade o avanço de uma campanha contra os imigrantes, especialmente do sudeste asiático, pessoas negras, ciganas, os habitantes das periferias pobres das grandes cidades, as pessoas LGBTQIA+, ou as mulheres.
As narrativas que culpam a imigração pela situação que se vive ganham espaço facilmente num país que nunca questionou as ideologias nacionalistas e racistas herdadas do colonialismo. São úteis a quem pretende enfraquecer os trabalhadores, impedindo-os de ver que, independente da cor da pele, nacionalidade, orientação sexual, identidade de género ou credo, somos todos explorados pelos patrões, com o apoio do governo.
Não por acaso, ao mesmo tempo, estes discursos servem para esconder o grande patronato, os banqueiros e os governos, estes sim os verdadeiros responsáveis pela deterioração das condições de vida e de trabalho.
A par com estas narrativas caminham também visões individualistas que atentam contra a ideia de que as mudanças vêm pela ação coletiva dos trabalhadores e, portanto, contra a capacidade da classe trabalhadora concretizar em força o seu número hegemónico na sociedade capitalista, como sua principal ferramenta.
Este tem sido o papel principal de uma extrema-direita, que não sendo igual ao fascismo dos anos 30 com organizações paramilitares contra os trabalhadores e as suas organizações, alimenta a desorganização da classe e legitima os atos violentos que vêm crescendo. Ao contrário do que vende, a extrema-direita não é anti sistémica, ela impulsiona o que de pior tem o mundo em que vivemos.
Ao mesmo tempo, as ameaças da IL e do Chega não se ficam por aí. Diante de um parlamento com maioria dois terços entre a direita e a extrema-direita, as hipóteses de mudanças de regime poderão tornar-se realidade. Poderá abrir-se um processo de ataque aos direitos democráticos e ao estado social, através de uma revisão da constituição, a que os trabalhadores e a juventude têm de dar resposta.
Unificar as lutas em curso, ganhar as consciências
Sabemos que as eleições são sempre um reflexo distorcido do que vai na cabeça da imensa maioria da população. Entendemos que boa parte dos votos do Chega em particular, mas também da IL, refletem um descontentamento e falta de resposta deste regime e dos seus partidos às necessidades dos trabalhadores e da juventude. Nesse sentido, as lutas que no período recente têm aparecido com alguma força em alguns setores (ex. bombeiros ou trabalhadores ferroviários) são muito importantes, uma vez que enquadram o descontentamento existente na ação coletiva dos trabalhadores. Saudamos vivamente essas lutas, consideramos fundamental a sua unificação, já que são demonstrativas que ainda existe capacidade de organização e luta como elemento essencial para o avanço da classe trabalhadora e do seu papel coletivo.
No entanto, sendo essencial, o elemento de disposição de luta não é suficiente. A ausência de sindicatos, partidos ou coletivos que impulsionem o descontentamento contra esta democracia dos ricos, levam a que a disposição de luta não se traduza por si num avanço da consciência. É necessário intervir nesses processos para avançar na unificação da classe trabalhadora, combatendo os racismo, o machismo e a xenofobia. Aproveitando cada greve, cada manifestação para canalizar o descontentamento existente contra os donos disto tudo, os patrões e o governo. Ao mesmo tempo, é importante organizar os setores alvo do preconceito nos locais de trabalho e nas escolas e mesmo nos processos de luta que ocorram, como forma de os tornar parte da força coletiva da classe trabalhadora.
O momento exige espírito crítico
Sabemos que diante deste crescimento da direita e dos seus sectores mais reacionários, diante da hecatombe da esquerda parlamentar, muitos ativistas sentem um instinto de unidade para enfrentar os desafios que a realidade atual coloca. No entanto, ao mesmo tempo em que é necessária unidade para lutar contra os ataques, não avançaremos na disputa pela consciência dos trabalhadores se não soubermos, entre ativistas, sindicalistas e militantes, fazer uma análise franca e profunda dos erros do passado. O que levou a esta derrota na disputa pela consciência dos trabalhadores? O que ofereceu o espaço do descontentamento com o regime à extrema-direita?
Entre as direções das principais forças da esquerda parlamentar, mesmo diante deste aprofundar da crise, não há até ao momento um balanço, nem sequer superficial, que procure compreender os espaços que foram abertos pela política das suas direções ao longo dos últimos anos.
Para não ir tão longe, é importante questionar o centro no parlamentarismo e na institucionalidade que BE e PCP refletem no seu trabalho político. Podemos identificar este facto na canalização brusca de um processo de greves gerais e mobilizações durante os governos da Troika para um processo eleitoral, que sim atribuiu 36 deputados a estes partidos. Mas que, entretanto, foram entregues a um suporte parlamentar de um governo liberal do PS, que nem sequer voltou atrás nos ataques da Troika e do PSD de Passos Coelho, respeitando todos os ditames da UE e convencendo os trabalhadores que é correto governar com os partidos da burguesia.
Já entre o movimento dos trabalhadores é preciso questionar o controlo das lutas e das suas organizações que o PCP impõe a ativistas e dirigentes sindicais. Recorrendo a manobras antidemocráticas e sem dar espaço a que o movimento sindical e social seja, assim como a sua composição, plural e com diferentes visões de mundo. Ou, por outro lado, a ausência do BE nas organizações de base e num trabalho quotidiano junto dos trabalhadores.
Também no campo do combate ao racismo e à xenofobia, é imperioso exigir à direção do PCP uma revisão de uma perspetiva profundamente conservadora que, sob o manto do patriotismo, ajuda a manter entre os trabalhadores ideologias nacionalistas, que celebram o colonialismo e perpetuam visões racistas. Essa perspetiva traduziu-se nos últimos anos, por exemplo, nas posições do então secretário-geral Jerónimo de Sousa que, perante as mobilizações anti-racistas ocorridas no contexto da morte de George Floyd nos EUA, dizia que em Portugal o racismo não era um problema. Esta conceção reflete-se na ciganofobia não combatida na região sul, ou nos despejos na área metropolitana de Lisboa de trabalhadores pobres, negros e imigrantes (ex. no Bairro da Jamaica e em Santa Marta de Corroios) levados a cabo por este partido à frente do poder local.
Refletir, debater, mas lutar em unidade
No contexto desta reflexão, é necessário construir uma necessária unidade de ação nas empresas, nas escolas, nas ruas, com todos quantos queiram lutar por melhores condições de vida, de estudo e trabalho.
Essa unidade será também necessária para lutar pelos direitos democráticos que venham a ser atacados, sabendo que têm que ser os trabalhadores a organizar a sua autodefesa e não esperá-la de um Estado ao serviço dos ricos.
Sem unidade para lutar, não se disputa a realidade, não se acumula força e confiança nos processos de luta, não se derrotam as ofensivas em curso. Sem unidade para lutar também não se testam novos caminhos, numa realidade complexa que teremos que enfrentar.
Organizar a alternativa revolucionária
A esquerda tem que deixar de disputar as migalhas dentro de um capitalismo em crise, cada vez mais podre, e tem que mostrar que não é neste sistema que os trabalhadores vão conseguir viver melhor. O capitalismo só traz barbárie e destruição da Humanidade. Só organizando os trabalhadores para superar este sistema e voltando a acreditar nas suas forças será possível vencer.
Ao mesmo tempo, é necessário mais ainda avançar na construção de uma alternativa política que supere os erros do passado, com todos aqueles – trabalhadores, jovens, movimentos sociais, coletivos, organizações da esquerda extra-parlamentar – que pretendam avançar nessa superação. É a esse serviço que nos movimentos sociais e nos locais de trabalho, o Em Luta trilhará o seu caminho.
Se estás descontente com a realidade atual, com a subida da direita e a apatia da esquerda institucionalizada, se queres contribuir para a reconstrução de uma esquerda revolucionária contra o capitalismo, vem conhecer o Em Luta!

