O Em Luta entrevistou o camarada Hertz Dias, do Movimento Quilombo Raça e Classe do Brasil e militante do PSTU (secção brasileira da LIT-QI), para saber as suas opiniões sobre o movimento negro e a luta contra o racismo no Brasil e no mundo.
Muita gente pensa que não há racismo no Brasil. É assim?
A compreensão do racismo não se pode restringir às relações interpessoais. Deve ser visto como uma ideologia orgânica do capitalismo que serve para garantir a domínio da burguesia, quase toda ela branca, sobre o proletariado no Brasil, que é na sua grande maioria formado por negros e negras. O extermínio da juventude afro-brasileira e as profundas desigualdades existentes entre negros e brancos no Brasil denuncia por si só o quão racista o país é. Sem entender a base material do racismo, não é possível entender o próprio Brasil. Essa tese de que não existe racismo no Brasil está a desmoronar.
Os Governos de Dilma e do PT mudaram alguma coisa na realidade dos negros brasileiros?
O PT vendeu a ideia de que estariam a levar o país para o paraíso da democracia racial. Muita gente, inclusivamente da esquerda e do movimento negro, assimilou esse discurso. De facto, dos 20 milhões de empregos criados durante o governo do PT, 80% foram para negros, só que foram empregos precarizados, mal pagos (1 salário mínimo e meio) e com alta rotatividade, tudo isso amparado no crescimento económico mundial. O PT chamou nova classe média a esses setores precarizados. Mas, ao contrário do que verbalizava, o PT aumentou a repressão nos bairros negros, aumentou ao máximo o encarceramento de negros, desfigurou o Estatuto da Igualdade Racial, registou menos territórios quilombolas* do que o governo do PSDB e afogou a juventude negra no seu próprio sangue. Já os casos de homicídios entre jovens e mulheres brancas diminuíram significativamente durante os 13 anos em que o PT esteve no poder. Para o proletariado negro, o PT foi tão racista como os governos anteriores. Isso levou os negros a romperem com o PT, assim como estão rompendo com a tese de que existe democracia racial no Brasil.
Há uma ideia em Portugal de que o colonialismo português foi diferente e que isso teria consequências numa situação melhor para os negros. É verdade?
Essa ideia veio à tona depois da abolição da escravatura. Fracassado o projeto de branquear o Brasil, a sua burguesia resolveu criar uma ideologia que servisse como amortecedor dos conflitos raciais e de classe. Assim nascia o mito de que o colonizador português foi tão benevolente com o escravo africano, sobretudo com as negras, que criou por aqui a maior democracia racial do mundo. Na verdade, os 350 anos de escravidão foram também 350 anos de revoltas negras e de formação de milhares de quilombolas, o que desmente a tese do colonizador benevolente e do africano dócil. O escravo mestiço, por exemplo, era fruto da violação que o colonizador praticava contra as mulheres negras e não de relações afetivas harmoniosas.
Como foi o teu percurso até integrares o ativismo político e partidário?
Comecei a minha militância negra no Movimento Hip Hop “Quilombo Urbano”, do qual fui um dos fundadores em 1989. Sempre simpatizei com o PSTU, partido que me aproximou do marxismo e do trotskismo, mas só em 2010 ingressei definitivamente nas fileiras do PSTU e da LIT por compreender que a minha militância seria muito limitada sem um partido com um programa revolucionário, internacionalista e que tenha o operariado com sujeito social da revolução.
Quais as lições do movimento negro após dois mandatos do Obama?
As lições ainda estão a ser tiradas, mas a principal é esta: não chega mudar a cor da mão que segura o chicote. Obama não conseguiu diminuir as desigualdades raciais nos EUA, pelo contrário, ampliou-as e isso fez com que as tensões raciais ressurgissem com um conteúdo mais classista do que nos anos 1960. Por isso, também tem crescido a simpatia dos negros com o socialismo no coração do imperialismo mundial.
Perante governos como o de Trump ou da violência policial gravíssima contra os negros em França, como vês as lutas dos negros no mundo de hoje?
O capitalismo teve a primazia de internacionalizar o racismo e com isso as lutas antirracistas. A cara feia e racista de Trump está a deixar fratura racial norte-americana mais exposta. Isso é mau para o imperialismo porque a luta contra o racismo pode transformar-se numa luta contra o próprio imperialismo, que foi quem criou o racismo. Por isso a União Europeia está a omitir dados sobre a violência racial na Europa, especialmente em França. Estejamos atentos à mundialização dessas lutas porque, como já disse, são explosivamente mais classistas hoje do que no passado.
Quais as limitações do “empoderamento negro” no combate ao racismo?
Essa é uma ideologia liberal elaborada por uma pequena burguesia negra norte-americana na esteira das lutas pelos Direitos Civis para desviar as lutas negras do seu foco anticapitalista e da influência do marxismo. Não contemplou os negros dos guetos e é isso que explica o radicalismo revolucionário de Malcolm X e dos Panteras Negras, mais ligados ao proletariado negro.
No Brasil, essa ideologia tem força nas universidades, mas no canteiro de obra e na periferia a ideologia que prevalece é a da sobrevivência, é a da luta contra a violência policial e contra o desemprego. É por isso que dezenas de coletivos negros estão a surgir nas periferias por fora das organizações negras, que se institucionalizaram. Existe um ascenso negro no Brasil nunca visto nos últimos 50 anos.
Que estratégia devem ter essas lutas para poderem ser vitoriosas?
Está na hora de resgatar a política de Reparações Históricas como parte do nosso programa transitório para unificar essas lutas. As organizações negras institucionalizadas abandonaram essa política desde a Conferência contra o Racismo ocorrida em Durban, em 2001, por pressão das delegações dos países imperialistas que lá estiveram. A partir das Reparações, podemos mostrar a essa geração de jovens negros, que tem na sua vanguarda as mulheres, que o empoderamento que temos que perseguir é o da Revolução Socialista e o da ditadura do proletariado, já que o capitalismo está a mostrar-se incapaz de garantir a esses jovens o direito mais elementar: o direito à vida.
Como podemos erradicar o racismo das nossas sociedades?
A pergunta parece ser fácil de responder, mas não é.
O racismo é uma ideologia cuja base material estava na necessidade de justificar a escravidão para garantir a acumulação de capital na Europa. Depois, passou a ser a base teórica do imperialismo e, portanto, não pode ser erradicada sem a destruição do capitalismo.
Isso não significa que temos de pedir aos negros que esperem pela chegada do socialismo, como fizeram os estalinistas durante todo o século XX, alegando até que tais lutas dividiam a classe. Hoje, a luta contra o racismo ganhou a sua feição mais dramática, que é a luta pela sobrevivência. Por isso, essa luta deve estar no centro da luta contra o capitalismo, tem que ser parte do nosso programa de transição, tal como tem feito o PSTU do Brasil e a própria LIT.
* Território quilombola é o estatuto jurídico atribuído a terras rurais ocupadas por descendentes de antigos escravos refugiados (quilombos). A atribuição do estatuto assegura à comunidade negra que aí reside a propriedade definitiva das terras.