Dez meses após a identificação, em Wuhan, na China, do primeiro caso de infeção pelo coronavírus, totalizavam-se, em finais de outubro, quase 50 milhões de casos e 1 milhão de vítimas mortais em todo o mundo. Em Portugal, a situação agravou-se face à registada em março, quando foi decretado o confinamento: alcançou-se o número recorde de mais de 4 mil casos num só dia. O número de óbitos também subiu, chegando a 40. O que fazer?
Na Europa, depois da trégua do verão, os números de infetados aumentaram de forma avassaladora, levando governos a implantar o recolher obrigatório e confinamentos localizados ou totais na tentativa de estancar o avanço da pandemia. Em Portugal, o governo de António Costa tem uma política de zigue-zagues: não reforçou o SNS, aprova medidas que não combatem a pandemia e vem equacionando medidas repressivas como o estado de emergência e o recolher obrigatório. Só rejeita até agora o único recurso que realmente conseguiu abrandar a primeira vaga da pandemia e impedir que o SNS entrasse em colapso: o confinamento, com o fecho de escolas, empresas (muito parcial), comércio e atividades não essenciais.
Alega-se, do PS ao PSD, passando pelo Presidente da República, que as pessoas estão fartas de confinamento. É verdade, mas não é essa a razão central para explicar por que o Governo, direita e empresários recusam o confinamento, assim como também não é verdade que a maioria da população rejeitasse esse encaminhamento, caso fosse acompanhado de medidas de proteção social. Os três primeiros estão interessados em manter o funcionamento da economia para não afetar os lucros da patronal.
As pretensas iniciativas do Governo para manter o emprego não resultaram; basta verificar o número de desempregados, que não para de aumentar. O lay-off revelou-se um excelente expediente para as empresas – inclusive as de grande dimensão, que poderiam perfeitamente prescindir desse recurso –, mas não para os trabalhadores. O desemprego, a pobreza e a fome foi a consequência de um confinamento que não salvaguardou os direitos de quem trabalha, mas sim os investimentos dos grandes empresários, como a Lone Star, o fundo abutre que comprou o Novo Banco, para quem nunca faltou dinheiro do Estado, mesmo em época de pandemia.
Um exemplo chocante dá-se no Grupo TAP, empresa privatizada e agora reconduzida ao setor estatal, onde – segundo o Ministro das Infraestruturas e da Habitação – estão previstos 2.800 despedimentos até março do próximo ano.
Confinar com proteção social
Não é possível deter a pandemia pela ponta, isto é, nos internamentos e nas Unidades de Cuidados Intensivos (UCI). É necessário um confinamento que impeça o colapso do SNS e que proteja os trabalhadores e as suas famílias, com a garantia de salário, emprego e transporte público de qualidade.
É imoral a continuidade da verdadeira tragédia verificada nos lares, onde viviam cerca de 40% das vítimas mortais da Covid-19 em Portugal. Uma boa parte desses lares são administrados pela Santa Casa da Misericórdia, uma instituição com mais de 500 anos e muitos recursos, e que ainda recebe financiamento do Estado. É indispensável a intervenção e a nacionalização desses lares, para que os idosos tenham direito a manter a sua vida.
A receita do Governo é a repressão
Uma das medidas previstas no primeiro estado de emergência decretado em março pelo governo PS foi a suspensão do direito de greve. Parecia uma iniciativa um pouco esdrúxula, mas tinha lógica do ponto de vista do Governo. Como António Costa não pretendia adotar medidas que garantissem um confinamento sem fome e com trabalho para todos, precavia-se contra possíveis reações de protesto.
Da mesma forma, responsabilizou os jovens, em especial os moradores dos bairros da periferia das grandes cidades, boa parte deles negros, afro-descendentes e imigrantes, pelo não cumprimento das normas de distanciamento social. Os seus ajuntamentos foram reprimidos, algumas vezes de forma violenta, como ocorreu na Cova da Moura e na Quinta do Mocho, na periferia de Lisboa. Um contraste evidente com o que aconteceu, por exemplo, no campeonato de Fórmula 1 no Algarve, onde uma aglomeração muito superior só recebeu uma reprimenda da Diretora-Geral de Saúde.
O estado de emergência é um recurso desnecessário, retórico e de repressão, tal como o recolher obrigatório. Não servem para combater a pandemia, mas desviam a atenção do que realmente deve ser feito, enquanto atacam as liberdades democráticas da maioria da população.
Cristina Portella
Texto originalmente publicado na versão digital do jornal Em Luta, N.º 24 (novembro 2020, p. 6)