Internacional

Podíamos?

“Hemos fracasado.” Com essa frase, Pablo Iglesias concluiu, em maio deste ano, a sua trajetória no Podemos, o partido que liderou e se tornou, ao lado do Syriza, o mais mediático fenómeno político europeu dos últimos anos.

Comecemos do início. Estávamos em 2014 quando um partido recém-formado estreava nas urnas do Estado Espanhol. O Podemos, liderado pelo professor de Ciências Políticas da Universidade Complutense de Madrid, analista político da TV e ativista social Pablo Iglesias, consegue 1,2 milhões de votos e cinco deputados nas eleições para o Parlamento Europeu. Nas sondagens, chega a aparecer à frente do PP (direita) e do PSOE (social-democracia). Milagre? Não, era a materialização eleitoral do ascenso social que varreu ruas e praças do país, provocou a abdicação do rei Juan Carlos e abalou o regime monárquico costurado em 1978 pela burguesia e pelo Partido Comunista de Espanha (PCE). 

A mobilização durou três anos e foi o farol da luta contra as violentas medidas de ataque aos salários e condições de vida dos trabalhadores impostas pela troika  (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) em muitos países, entre os quais Portugal. Entre 15 de maio de 2011 – o chamado 15M – e 22 de março de 2014 – com as Marchas de la Dignidad – milhões de pessoas, jovens e velhos, participaram em marchas, ocupações de praças e assembleias para exigir “pão, trabalho e teto”, mais democracia e o fim da intervenção da troika no país. 

Em seu manifesto inaugural, o “Mover ficha: convertir la indignación en cambio político”, o núcleo fundador do Podemos – além de Pablo Iglesias, Miguel Urbán (partido Esquerda Anticapitalista) e Juan Carlos Monedero (ex-assessor do partido Esquerda Unida e do governo venezuelano de Hugo Chávez), entre outros – reivindicava a moratória do pagamento da dívida pública, a nacionalização da banca e das empresas energéticas, a suspensão dos despejos, a revogação das leis de imigração, a saída da OTAN e a “soberania dos povos e o direito de decidir o seu futuro livre e solidariamente”. 

Esta colagem programática às reivindicações do movimento social não durou muito.

Reação democrática

Com pouco mais de um ano, o Podemos mostrou a que vinha. Em 2015, Pablo Iglesias participa da receção ao rei, justamente quando manifestações contrárias à monarquia eram promovidas em todo o país; e outros quadros do partido reúnem-se com representantes de fundos de investimentos e banqueiros internacionais para expor-lhes as suas propostas e ouvir as suas preocupações. “Há duas culturas empresariais. Uma é a casta; a outra quer contribuir para o bem-estar social, como a família Botín no banco Santander”, declarou a um espantado jornalista do El Diario o secretário-geral do Podemos em Madrid, Jesús Montero. 

O programa apresentando por Podemos naquele mesmo ano, “Un proyecto económico para la gente”, distancia-se do manifesto inaugural “Mover ficha”. Já não estão lá a nacionalização da banca e das empresas estratégicas, a moratória da dívida pública, a renda básica universal, a reforma aos 60 anos (substituída pelos 65 anos) ou o fim das subvenções ao ensino privado. O Euro transforma-se numa vaca sagrada e defende-se apenas a “flexibilização do pacto de estabilidade”, isto é, das regras ditadas pela União Europeia para impedir o investimento em serviços públicos e políticas sociais. Quando ao direito à autodeterminação reivindicado pelo País Basco e pela Catalunha, Pablo Iglesias passa a considerar que os governos locais – as Generalitat – não têm competência para declarar a independência, porque esses processos deveriam responder à legalidade e à democracia. Isto é, ao governo central do Estado Espanhol, radicalmente contrário a qualquer questionamento ao seu poder, como ficou demonstrado recentemente na Catalunha.

O espetacular resultado de Podemos nas eleições de 20 de dezembro de 2015, quando obtém 20,65% dos votos e 69 deputados, tornando-se na terceira força política do Estado Espanhol, empurra o partido ainda mais à direita. Podemos transformara-se num fator ativo da reação democrática: “integrar a indignação social nos estreitos marcos da democracia parlamentar espanhola”.

Aproximação ao PSOE

A partir de 2016, Podemos dá o passo definitivo na sua domesticação ao aproximar-se do PSOE, que deixa, segundo a nova análise, de fazer parte da “casta” para converter-se num possível sócio de governo, e do seu secretário-geral, Pedro Sánchez, classificado como um “presidente do progresso”. Estava longe o tempo em que afirmava: “PSOE, PP, la misma mierda es”. É importante destacar que o PSOE, à semelhança do PS português e da social-democracia, é um partido que defende os interesses das grandes empresas e da banca, que aplicou os ditames da troika e continua a promover a precariedade laboral e a defender as muralhas europeias contra os imigrantes. 

É claro que essa viragem provoca crise, dentro e fora do partido. O Podemos é castigado nas urnas, justamente onde não queria parar de crescer. Nas eleições de 2019, perde 1,5 milhões de votos, governos municipais e a maioria dos deputados das autonomias. O centro do discurso de Pablo Iglesias passara a ser mendigar um posto no governo de Pedro Sánchez. Consegue-o. A 13 de janeiro de 2020, tomam posse os ministros do novo governo do PSOE, entre os quais 5 ministros do Unidas Podemos (coligação eleitoral entre Podemos e Esquerda Unida), entre eles Pablo Iglesias, que é ungido segundo vice-presidente, à frente da pasta dos Direitos Sociais.

Como tudo acabou

Um ano depois, tornou-se evidente que a justificativa dada por Pablo Iglesias para participar num governo de coligação com o PSOE – esquerdizá-lo e legislar para os de baixo – não fora cumprida. As reformas laborais implantadas nos tempos da troika por governos do PP e PSOE mantiveram-se; e, com o surgimento da pandemia de coronavírus, os despedimentos agravaram-se, apesar de se ter anunciado a sua proibição. A Ley Mordaza, criada em 2015 no governo do PP e criticada pela Amnistia Internacional como uma ameaça ao direito de reunião e à liberdade de expressão, não só não acabou como foi largamente utilizada durante os vários períodos de confinamento. O preço da eletricidade multiplicou e os arrendamentos não foram regulados, o que provocou milhares de despejos. A pobreza, a fome e a desigualdades aumentaram. A monarquia mantém-se alegremente, enquanto os presos políticos independentistas permanecem na prisão.

Um triste balanço para um projeto de “esquerdizar” o PSOE. Mas não foi por isso que Pablo Iglesias saiu do governo de Pedro Sánchez e anunciou a sua candidatura à Comunidade de Madrid. A sua ambição com esse novo projeto seria, segundo explicou, unir a esquerda e deter o crescimento do Vox, o partido de extrema-direita. Não conseguiu nem uma coisa nem outra. O partido do seu ex-camarada à frente do Podemos, Íñigo Errejón, apresentou-se independentemente e ainda por cima ultrapassou-o em número de votos; o Vox também teve mais votos que Podemos, que amargou o quinto lugar. Foi demais para Pablo Iglesias, que imediatamente comunicou a sua decisão de deixar a política e todos os cargos que ocupava. 

Podíamos?

Ficou claro que não. Não com uma política de desviar as lutas para a disputa eleitoral; não com uma tática de buscar atalhos à custa do sacrifício do programa e dos princípios; não à custa de unir-se com um dos maiores representantes da burguesia espanholista – o PSOE; não ao negar a luta de classes para, como se verificou, cair nos braços da burguesia e, como consequência quase imediata, provocar desmoralização nas hostes dos trabalhadores e da esquerda e, pelo contrário, dar fôlego à extrema-direita que proclama combater. 

Podemos não esteve e não está sozinho nesse percurso. Desde o seu nascimento até aos dias de hoje teve ao seu lado partidos como o Syriza, da Grécia, ou o Bloco de Esquerda, de Portugal. No dia 26 de abril deste ano, era divulgado um vídeo em que vários líderes da chamada esquerda europeia prestavam o seu apoio à candidatura de Iglesias à Comunidade de Madrid, entre eles Alexis Tsipras e Catarina Martins. A mensagem era essencialmente a mesma: a vitória de Podemos significaria o fim da política de austeridade e uma barreira contra a extrema-direita. Nenhum constrangimento pelo facto de um dos intervenientes do vídeo, Alexis Tsipras, ter protagonizado a maior traição à luta dos trabalhadores gregos nos últimos tempos, mantendo, apesar do referendo popular de julho de 2015 tê-lo rejeitado, o pacote de austeridade exigido pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu. 

Iglesias e o seu Podemos no governo do PSOE, assim como o Bloco de Esquerda na “Geringonça”, o acordo de sustentação parlamentar do governo PS entre 2015 e 2019, não só não acabaram com a austeridade, como serviram de muleta para a recuperação eleitoral da social-democracia, além de terem, ao contrário do que pretendiam, auxiliado o crescimento da extrema-direita. 

 “A vida mostrou que não há soluções fáceis baseadas na construção de aparatos eleitorais e triunfos efémeros; que não é possível prescindir do trabalho quotidiano de construir uma força revolucionária enraizada no movimento operário e popular e entre a juventude. Uma força para a qual a necessária participação nas eleições seja um instrumento ao serviço das lutas e da defesa de um programa revolucionário. Uma força que lute para construir outro 15M, desta vez mais massivo, mais operário e popular, auto-organizado democraticamente, que não se deixe institucionalizar, mas que, pelo contrário, enfrente o regime monárquico para abrir caminho a um processo constituinte e a uma transformação socialista.”

Cristina Portella