Reconhecendo o papel que cumpriu no golpe que derrubou a ditadura, acreditamos que faz falta discutir a fundo o projeto político que Otelo Saraiva de Carvalho representava e as condições históricas que permitiram que pudesse cumprir o papel político que o projetou na História portuguesa.
Do alto do seu domínio, por agora inquestionável, a burguesia e os seus porta-vozes bem podem parecer generosos, compreensivos e magnânimos, e até elogiar, no dia da sua morte, a coragem e o papel decisivo de Otelo na preparação do golpe militar de 25 de abril de 1974. Afinal, a revolução operária que ameaçou a burguesia durante os anos 1974-1975 foi derrotada e os seus heróis e ‘excessos’ ficaram arrumados algures na memória coletiva, que em grande medida a burguesia controla e reconta à sua maneira. A vigente democracia parlamentar, fundada pelo golpe militar do 25 de novembro de 1975 e tornada possível pelos vários partidos reformistas antes e depois daquela data, vai igualmente servindo os seus propósitos. Mais, adaptou-se aos novos tempos de subordinação às burguesias mais fortes europeias e, assim, pode ir servindo ao povo português a decadência enquanto guarda para si os privilégios.
As circunstâncias que permitiram derrubar a ditadura, uma revolução anticolonial em África
A ideologia do regime democrático-burguês governante costuma esquecer o papel decisivo da luta pela independência dos povos ocupados pelo velho império colonial-fascista português na desagregação política e moral dos soldados e baixa e média oficialidade do exército colonial, na qual se incluía Otelo e o restante MFA. Foi uma luta sacrificada, ensanguentada pela ação do exército colonial-racista, pejada de milhares de heróis, homens e mulheres. Aquela resistência armada – que particularmente desde 1961 acertava por fim o passo com as lutas triunfantes dos povos dos impérios coloniais francófono e britânico vizinhos – perspetivava uma ‘guerra sem fim’, absorvia vidas de milhares de jovens, que eram obrigados a combater a milhares de quilómetros de distância, e queimava recursos desmedidos. Por fim, obrigou a que as suas armas se virassem contra o alto comando militar colonial-fascista sediado na metrópole, que também começava a abrir fendas que se estendiam até sectores da burguesia “liberalizante”.
A tão então falada originalidade do “processo revolucionários português” “resumia-se a que a luta persistente das massas negras propagara-se para o interior dos ministérios metropolitanos através do nervo central do seu poder: o exército colonial! Aquele “esquecimento” é conveniente: serve para alimentar o mito de um 25 de Abril sem sangue, nascido numa manhã radiosa, quase unânime e consensual, quase paternalista em relação aos povos dos países de onde foi expulso e, pior ainda, para ir adiando o confronto com o racismo-colonialismo ainda hoje vigente e que nega aos povos africanos a capacidade fazer história. Mas também serve para que os (por agora) vencedores possam facilmente apossar-se da História e, por essa via, pôr e dispor de personalidades – como Otelo -, exagerando e agigantando as suas capacidades e genialidade, obscurecendo ou negando a força da corrente de milhares de outros seres.
Mas os povos africanos não estavam sós na sua luta nas décadas de 60/70: na metrópole, vários sectores operários e populares – com destaque para a juventude – protagonizava greves massivas, mobilizações de rua, arrancava conquistas sindicais e políticas à ditadura. Parafraseando o jovem oficial Salgueiro Maia na madrugada do 25 de abril no quartel de Santarém antes de avançar com as suas tropas para o centro do poder da ditadura, aquele era o “estado a que o regime colonial-fascista tinha chegado”. A ‘revolução do 25 de abril’, com os seus avanços e recuos, impôs por vezes a recusa do embarque de soldados para Angola e Moçambique onde deveriam servir os novos arranjos e negociações neocoloniais com o novo governo (Spínola).
O papel do MFA na revolução na metrópole
Como sabemos a revolução vai além do golpe que derruba a ditadura militar e começa a crescer para uma revolução operária e socialista, protagonizada pela classe trabalhadora com as suas reivindicações classistas e organismos de classe. O MFA de Otelo e de outros ‘militares do 25 de abril’, ele próprio, o PS e o PC têm agora que lidar com este novo sujeito social e político, altamente mobilizado, impulsionado pelo empobrecimento imposto pelo decadente capitalismo português.
Na sua análise sobre a revolução portuguesa, Nahuel Moreno analisa os diferentes atores no processo da revolução:
” Se observarmos o panorama político português, reparamos que a burguesia e a classe operária estão claramente representadas. A primeira nas suas diversas alas, pela oficialidade reacionária, Spínola, Costa Gomes e os partidos políticos burgueses. A segunda tem dois representantes pequeno-burgueses ou, o que dá no mesmo, burocráticos: o socialismo e o estalinismo. A pequena burguesia, pelo contrário, não tem aparentemente nenhuma organização específica que a represente. Isto não é casual: todos os partidos portugueses são, em certo sentido, novos, já que os cinquenta anos de fascismo não lhes deram oportunidade para experimentar quadros e direções. Isto é duplamente certo no campo do “povo”. O PC e o PS basearam a sua ideologia e aparelhos em fatores externos: Moscovo e o estalinismo europeu, no primeiro caso; a social-democracia europeia, no segundo.”
E sobre o MFA conclui:
“Parece-nos que a pequena burguesia portuguesa, por falta de tempo histórico, teve que improvisar a sua representação política, repartindo-a por várias organizações não específicas. Ela recaiu em grande parte, nos partidos socialistas e, em menor grau nos partidos colaterais do estalinismo. Este vazio obrigou a improvisar uma organização específica dentro do exército, que representasse fundamentalmente a classe média, o MFA. (…) Em Portugal, a inexistência deste grande partido da classe média fragmentou a representação desta em três ou quatro sectores políticos, mas obrigou a que se organizasse de forma unitária dentro do exército.
(…) estas contradições insolúveis resolvem-se (e o carácter do MFA, da sua história de oscilações entre a burguesia e a revolução, com choques dos dois lados, torna-se transparente) mal o consideremos como representação política da moderna classe média dentro do exército, é levado a ter que desempenhar o papel conciliador entre a revolução operária e colonial em curso e a burguesia portuguesa e as suas representações políticas e militares.
(…)As contradições que sacodem o MFA expressam simplesmente o carácter contraditório da classe que representa: com métodos plebeus, “socializantes”, é a mais formidável ferramenta com que conta atualmente a burguesia imperialista portuguesa. Se cumpre um papel tão destacado na estratégia da burguesia, isto deve-se à extrema debilidade desta e do imperialismo que defende. Esta debilidade, que faz com que o exército entrasse em crise, deixa a classe média imperialista como única trincheira frente à revolução, não só em Portugal como também no império. A burguesia imperialista não terá uma ferramenta melhor até que consiga disciplinar o exército ou desenvolver um movimento fascista.”[1]
Vários episódios atestam o caráter pequeno e médio burguês referido acima, dependente da grande burguesia, apesar do seu caráter plebeu e até por vezes “esquerdista” do MFA e de Otelo: no 25 de Abril de 1974 dominavam militarmente a capital com os seus tanques, as populações enchiam as ruas e praças, com isso os últimos representantes da ditadura fascista, como Marcelo Caetano e Américo Tomás, ficaram encurralados no Quartel do Carmo e a postura do MFA foi entregá-los ao representante militar da alta burguesia, António de Spínola, que depois os envia para um exílio dourado no Brasil sem que o povo português tivesse possibilidade de os julgar pelos seus crimes; no Programa do MFA, cartilha unificadora dos diversos sectores que decidiram derrubar o aparelho fascista colonial, não há uma palavra sobre a independência dos povos das ex-colónias ou pela saída da NATO, aliança imperialista da qual Portugal é membro fundador; no dia 25 de novembro de 1975, apesar das prévias sublevações de militares revoltosos e mesmo de grandes mobilizações operárias (operários da construção civil que cercaram em S. Bento o governo burguês de turno…) Otelo Saraiva de Carvalho escolhe apresentar-se no Palácio de Belém perante o seu superior hierárquico, general Costa Gomes, líder máximo das ‘forças disciplinadoras’ organizadas pelo Conselho da Revolução que saíram à rua e atacaram vários quartéis ‘contaminados’ pela revolução, esvaziando assim as expectativas dos oficiais insubordinados de que encabeçasse uma resistência consequente à ação da hierarquia militar.
As ilusões da maior parte da esquerda na ala esquerda do MFA como saída para a revolução não se confirmaram. A saída de um socialismo dos trabalhadores, não poderia vir do PS e PCP, mas também não poderia vir da esquerda do MFA, que nunca teve um programa independente da burguesia, nem de levar os trabalhadores ao poder através da unificação das comissões de trabalhadores, para toma do poder. Reconhecer o papel fundamental de Otelo e outros militares no derrube da ditadura do Estado Novo (bem como de tantos outros anónimos), não deve ser por isso ser confundido com o projeto político, oposto ao que defendemos, que este procurou representar durante o processo revolucionário.
Eh pá… a malta ainda não construiu o partido revolucionário!
A Revolução Portuguesa de 74-75 deixou várias marcas na memória coletiva que ainda hoje perduram: MFA, Otelo, Salgueiro Maia, Spínola, Álvaro Cunhal, Mário Soares, Vasco Gonçalves, Conselho da Revolução,… Mas o ‘partido operário revolucionário’ não faz parte do léxico herdado da revolução. Não é com certeza apenas porque 45 anos de “democracia” se impôs na memória e foi eliminando os ‘corpos estranhos’. Manda a verdade que se diga que tal partido não existia, ou, apenas existiu sob a forma de embriões. A classe trabalhadora teve que viver a revolução com o que tinha e com o que não tinha. As forças políticas que passaram então pelo poder falavam em seu nome, até disputavam acerrimamente o poder entre si, mas nunca a quiseram no poder, apesar de protagonizar várias mobilizações extraordinárias que abalaram e derrubarem governos provisórios. Esse ‘partido operário revolucionário’ teria que ter no seu programa a unificação dos vários organismos da classe para a tomada do poder, a imposição de medidas anticapitalistas, a construção do socialismo não só a nível nacional mas também pelo menos a nível da Península Ibérica.
A sua ausência tornou grandes todos aqueles que ofereceram atalhos, sem dúvida fáceis e atraentes, mas que detiveram a revolução do 25 de Abril na fronteira da democracia burguesa. Ultrapassar esse limite e prosseguir no caminho do socialismo é a tarefa histórica que urge impulsionar.
[1]Revolução e contrarrevolução em Portugal, Nahuel Moreno, julho 1975, Edições Em Luta, 2019