TEORIA

A série da NETFLIX e o Trotsky ao contrário

Depois da Netflix, é agora a RTP2 a transmitir a série "Trotsky", uma produção russa que deturpa, de forma escandalosa, a vida do revolucionário russo e o seu papel enquanto principal dirigente da Revolução Russa. Republicamos, por isso, a análise da série neste texto de Romildo Araújo, escrito por ocasião estreia da série na Netflix.

A Netflix disponibilizou uma nova série, Trotsky. Voltada para o tema político, é composta por 8 episódios na primeira temporada em exibição. A série foi produzida pela SREDA Production Company, um canal de televisão da Rússia. A rede pública russa Pevry Kanal transmitiu, no início de novembro de 2017, os oito episódios de Trotsky. Durante o Mipcom, o mercado internacional de conteúdos audiovisuais, que acontece em Cannes, a série foi apresentada ao mercado para empresas como a Netflix e outras do género, que apresentam as séries ao grande público. 

A narrativa da série é uma suposta entrevista de Trotsky, no exílio em Cayoan (México), a um jornalista (Jackson), na qual retoma os principais momentos da Revolução Russa, fazendo um reexame da política bolcheviques e de seus desdobramentos. O deslocamento do tempo é alternando entre o antes (revolução) e o depois (exílio), um diálogo com um jornalista difícil de entendimento para os desavisados no tema da Revolução Russa. Em tom de uma autobiografia do revolucionário russo, a série pode ser definida como uma versão torpe da sua vida. Numa distorção grosseira, essa série busca transformá-lo numa liderança autoritária e sem escrúpulos, guiada por uma sede de vingança unicamente, escondendo a verdade que se coloca sobre a trajetória da luta pelo socialismo empreendida pelo velho bolchevique. 

Como sabemos, Leon Trotsky (Liev Davidovick Bronstein) nunca foi uma pessoa pacata: tinha têmpera na defesa das suas posições e no combate aos adversários. Contudo, combatia também os métodos degenerados, e o seu legado foi grandioso não só na defesa de um projeto comunista, mas também de uma nova moral que superasse a decadente moral burguesa. Por isso, as posturas arrivistas e aventureiras apresentadas na série como se fossem suas, foi o que ele sempre condenou e combateu. “A moral deles e a nossa” é uma obra bastante significativa para delimitação que sempre gostou de fazer nas questões teóricas centrais do movimento revolucionário, separando operários e burgueses, reformistas e revolucionários e estes e os carreiristas e oportunistas de plantão que, com seus atalhos, procuram sempre justificar seus recuos e capitulações. O critério básico que estabeleceu foi genial quando afirmou que nem sempre os fins justificarão os meios, porque estes nem sempre levarão verdadeiramente aos fins. 

O personagem fabricado pela produção do filme nada tem a ver com o verdadeiro Leon, como o chamava sua amada Natália Sedova. Um dirigente firme, enérgico, porém sempre muito científico e voltado para o projeto histórico. Seguiu uma trajetória autêntica e própria até aderir, no calor das lutas revolucionárias contra o regime decadente dos czares, quando conforma com Vladimir Lenin e outros dirigentes o núcleo duro da direção política da Revolução de Outubro.

Ao confrontar as suas práticas com os valores mais tradicionais da sociedade russa da época, a narrativa divulgada pela Netflix esquece que ele escreveu uma das melhores obras para discutir a mudança de hábitos após a revolução (Modo de vida comunista), analisando o quão difíceis foram as mudanças para se chegar ao projeto de um novo homem pós-revolução. O conteúdo da violência bárbara do personagem “Trotsky” (um canibalismo épico) nada tem a ver com o próprio desenrolar da revolução, pois, no dia da tomada do poder pelos trabalhadores, apenas um incidente levou à morte um andarilho que transitava pelas ruas de Petrogrado, durante a madrugada, mas sem relação com a insurreição. O que se viu muito foi alegria, mas também o silêncio que percorreu as ruas da cidade anunciando a virada histórica. Era a esperança de dias melhores que se traduzia na expectativa de consolidação do novo regime. Era o fim do regime cruel e violento dos czares. A série ameniza o seu papel em momentos cruciais das suas grandes tarefas políticas, como a ação militar:

Na guerra civil, Trotsky organizou praticamente do nada o poderoso Exército Vermelho, que reuniu cerca de seis milhões de pessoas e enfrentou a poderosa ofensiva militar desencadeada pela burguesia e pelo imperialismo. Entre 1918 e 1920, Trotsky comandou toda a resistência revolucionária, derrotando 14 exércitos armados pelas potências capitalistas para invadir a nascente República Soviética (TROTSKY: uma vida…2004). 

A resposta aos ataques ao novo regime socialista, comandado pelos sovietes, pelos contras patrocinados por várias nações imperialistas, precisou de resposta concreta, pois o país estava destruído pela guerra imperialista e sob os ataques da reação através de uma guerra civil. As palavras paz, pão e terra, que sintetizaram as necessidades imediatas do povo russo e que conduziram o assenso de lutas em prol da tomada do poder, diz muito do que pensava o verdadeiro Trotsky: nunca se afastar dos interesses dos trabalhadores e do seu nível de consciência, da sua vida concreta.

A série começa e termina em Cayoan (México), onde ficou no exílio realizando os seus trabalhos teóricos. Sem nenhum limite para as falsificações na trajetória do personagem histórico, a série tenta colocá-lo como aquele líder derrotado que, ao fim da vida, pensava de forma solitária e compulsiva nos erros do passado, tentando justificá-los a todo custo. Mas não foi isso. Este, depois do exílio, teve uma agenda política marcada por grandes tarefas: reuniões, conferências e elaborações teóricas. As suas obras estão disponibilizadas ao público, que precisa sentir o gosto da sua escrita e o seu rigor científico sobre temas ainda hoje atuais.

A série omite que, nos primeiros momentos da nova União Soviética, Leon Trótsky desempenhou importante papel político, que assumiu, primeiro como Comissário do Povo (Ministro) para os Negócios Estrangeiros, depois como organizador e comandante do Exército Vermelho, criado para defender a fundação da nova sociedade pela Revolução Bolchevique. Dedicou a sua vida à tarefa mais espinhosa.

Moreno (1995) chegou a afirmar que uma das grandes conclusões de Trotsky foi justamente sobre o processo de burocratização da ex-URSS, na qual o poder foi apropriado pelos métodos totalitários que ascenderam com o Estalinismo naqueles países e nas organizações operárias, sindicatos e partidos que se reivindicam da classe trabalhadora e que se corromperam pela burocracia. E esse é um grande acerto de Trotsky, que foi o primeiro a empregar essa terminologia, que hoje é universalmente aceite.

Depois da derrocada das ditaduras estalinistas, no final dos anos de 1980, intelectuais, entre eles o seu Neto Esteban Volkov, empreendem uma árdua luta pela reabilitação de Trotsky na História da Rússia, devolvendo-lhe o direito de ser reconhecido como personagem da história moderna daquela sociedade. Com isso, a perspectiva era que o velho tivesse também o seu lugar nos manuais escolares. A sua imagem foi varrida da história pela falsificação estalinista durante o regime de terror. 

Creio que a sua retoma e a livre divulgação das suas obras na Rússia atual, embora ainda de difícil acesso ao público, seja uma grande vitória para que os jovens e os proletários russos possam manter contactos com os seus textos e obras e conhecer o seu importante papel nas transformações que ocorreram. Nesse sentido, a série disponibilizada pela Netflix quebra o tabu sobre o dirigente, mas, além disso, em nada pode ajudar, senão a confundir o público, levando ao banco dos réus um personagem que representa o contrário de tudo que foi Trotsky. Apresentaram Trotsky ao contrário.

A série Trotsky é um produto do mercado cinematográfico, que hoje lucra bilhões no mundo inteiro sem nenhum compromisso com a verdade histórica. Nos 100 anos da Revolução Russa, a produtora lançou o seu produto visando o “nobre” mercado, mas também com um ar de vingança. Tentam apagar as lições de outubro, apresentando ao público um personagem inexistente naquele momento histórico.

Na década de 1950, um grande biógrafo de Trotsky, o marxista polaco radicado em Inglaterra, Isaac Deutscher, escreveu a sua monumental biografia em três volumes: O Profeta Armado (1879-1921), O Profeta Desarmado (1921-1929) e O Profeta Banido (1929-1940), embora questionando muitas das suas posições. Pierre Broué também nos proporcionou uma leitura da vida do revolucionário, pontuando o seu alinhamento com as posições do dirigente russo. O próprio Trostsky deixou as suas memórias registadas em centenas de páginas da obra Mi Vida, uma impressionante autobiografia, de uma escrita sedutora que não deixa dúvidas sobre os seus pensamentos, teorias e práticas. E em A Revolução Traída vai desenvolver uma análise da conjuntura complexa que produz a degeneração burocrática da URSS, que o conduz à afirmação da necessidade de uma nova revolução política para devolver o poder usurpado dos trabalhadores.

A fotografia da série de razoável qualidade é desperdiçada numa trama possivelmente de adepto da restauração capitalista na Rússia. É melhor considerar a série como sendo o último capítulo dos Processos de Moscovo, nos quais Leon Trostky foi condenado sem qualquer prova, muitas vezes sem direito à defesa. O pior de tudo é que a série colocou muitas palavras na boca de Trostky, fazendo do mesmo um “réu confesso” de coisa terríveis. A qualidade de “Os dez dias que abalaram o mundo” manda lembranças!

Romildo Araújo (PSTU-Brasil)
Texto originalmente publicado aqui a 22/02/2019
Revisão para português europeu: Em Luta

Referências:

CEM ANOS APÓS REVOLUÇÃO, Trotsky vira ‘herói’ de série de tv russa. O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/cem-anos-apos-revolucao-trotsky-vira-heroi-de-serie-de-tv-russa-21979871&gt;. Acesso em: 18 dez 2018.

QUEM É TROTSKY?. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=te-3G3eG5YE>. Acesso em: 19 dez 2018.

MORENO, Nahuel. Ser Trotskista hoje. Marxists Internet Archive, nov.  2001. Disponível em : https://www.marxists.org/portugues/moreno/1985/mes/troskista.htm. Acesso em : 20 dez 2018.

TROTSKY: uma vida dedicada à revolução socialista. Disponível em : <https://www.pstu.org.br/trotsky-uma-vida-dedicada-a-revolucao-socialista/&gt;. Acesso em: 19 dez 2018.

TROTSKY. Glossário. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_b_trotsky.htm> Acesso em: 20 dez 2019.