Internacional

Economia mundial: recuperação anémica e com muitos problemas

Em agosto passado, a economia dos EUA criou muito menos empregos que o esperado[1]. Para os analistas burgueses, este dado e o da inflação lançaram o alerta amarelo, nos EUA e no mundo, sobre o caráter e a dinâmica da recuperação em curso da economia mundial.

Comecemos localizando este momento atual numa sequência mais longa. No artigo “Para onde vai a economia mundial?”, publicado no site da LIT site em novembro do ano passado, analisamos as grandes flutuações de 2020[2].

Nesse artigo, realizávamos uma sequência da dinâmica do PIB mundial nos três primeiros trimestres de 2020. No primeiro trimestre, a economia mundial caiu cerca de 1,2% como reflexo do travão e da dinâmica recessiva que já trazia desde o ano anterior. No segundo trimestre, pelo impacto da pandemia e das medidas restritivas, foi registrada uma queda média em torno de 10%, uma cifra cuja magnitude não se via desde a crise de 1929, com retrocessos históricos em muitos países, inclusive nas potências imperialistas. O terceiro trimestre mostrou um travão na queda e o início de uma recuperação em praticamente todos os países. Nesta mudança da dinâmica incidiram essencialmente a suspensão das restrições da pandemia (a hipócrita e criminosa política do “novo normal”) e o reflexo dos “pacotes de ajuda” dos governos imperialistas às empresas e famílias. Esta dinâmica manteve-se no quarto semestre. Porém, o saldo global no PIB mundial foi muito negativo: -3,2% segundo o FMI e -3,6% segundo o Banco Mundial[3].

Esta recuperação continuou nos dois primeiros trimestres de 2021, com uma projeção anual de +6% de crescimento do PIB mundial segundo o FMI, +5,6% para o Banco Mundial e +5,8% para a OCDE[4]. É a dinâmica geral das economias dos EUA e China as que estão a empurrar para cima, já que outros polos centrais, como Europa e Japão, vêm de um processo muito mais lento e difícil. E as economias como as latino-americanas também, por exemplo, a do Brasil[5].

Uma recuperação quebrada

É neste contexto de uma dinâmica geral ascendente, mas com muitas desigualdades, que tanto os organismos financeiros internacionais como os analistas económicos começaram a introduzir uma nova letra (a K) para se referirem às características desta recuperação. O que significa? Que de modo simultâneo um setor de empresas “sobe” e outro “cai”. Ou, em termos que utilizamos noutras circunstâncias, um desenvolvimento “em tesoura”. Num artigo muito interessante de meio de comunicação espanhol, explica-se: “Mas o que alguns afirmam que estamos vivendo não é isso [formato V ou cachimbo Nike], mas uma recuperação em forma de K, que supõe um desacoplamento dos diferentes sectores da economia, uma ruptura económica. É que após a crise, vêm os ganhadores e perdedores, especialmente na bolsa dos EUA”[6].

Segundo a descrição do FMI no relatório de abril passado: “As recuperações económicas estão a divergir de país para país e de setor para setor devido à diversidade de transtornos induzidos pela pandemia e do grau de respaldo das políticas. As perspetivas dependem não só do resultado da luta entre vírus e vacinas, como também do grau em que as políticas económicas exercidas a meio de uma grande incerteza podem limitar os danos duradouros causados por esta crise histórica”.

No último informe do FMI (“As brechas na recuperação mundial aprofundam-se”), este organismo indica que se acentua o desenvolvimento “em tesoura” entre países: “As perspetivas económicas divergiram ainda mais entre os países a partir das projeções publicadas na edição de abril de 2021 de ‘Perspetivas da economia mundial’. O acesso às vacinas transformaram-se na principal brecha que divide a recuperação mundial em dois blocos: os países que podem esperar uma maior normalização da atividade no  final deste ano (quase todas as economias avançadas) e aqueles que ainda enfrentam um novo surto de contágios e um aumento do número de vítimas de COVID. Entretanto, a recuperação não está assegurada, inclusive naqueles países com níveis de infeção muito baixos, enquanto o vírus circular em outros países”.

“Ganhadores  e Perdedores”

Dissemos que, pelo menos em termos nominais, as economias dos EUA e China são as que apresentam as melhores perspetivas de recuperação em 2021. Isto significa que as duas principais economias do mundo tenderão a acumular uma fração crescente do PIB mundial.

No âmbito das grandes empresas, também houve e há ganhadores e perdedores. Em junho de 2020, o Financial Times publicou uma lista de vinte empresas que estavam “brilhando” durante a pandemia, de acordo com o crescimento do valor das suas ações desde o mês de fevereiro de 2020[7]. Nessa lista destacam-se, nos primeiros lugares, Amazon, Microsoft, Apple, Tesla, Tencent e Facebook.

Este quadro pode estar um pouco “envelhecido”, já que ocorreram algumas mudanças de localização e de rendimentos de outras empresas do “top 20”. Mas marca algumas tendências que permanecem. A maioria são empresas que utilizam as novas tecnologias, algumas delas especializadas em comércio eletrónico. Ao mesmo tempo, dentro da lista há um evidente predomínio de empresas norte-americanas, seguidas por certa presença de empresas chinesas e, muito menor, de outros imperialismos.

Uma conclusão é que essa dinâmica dividida dos diferentes setores acentua ao extremo o processo que Marx chamou de “centralização do capital”, ou seja, o controle de frações cada vez maiores por parte de um número menor de burgueses. Como uma expressão evidente deste salto, estima-se que atualmente 50 empresas já controlam 28% do PIB mundial[8]. Além disso, o ritmo a que obtêm lucros, ou seja, a que reproduzem de modo ampliado o seu capital (embora haja fatores especulativos que exagerem este dado) determina que essa concentração aumentará de modo acelerado[9].

Por outro lado, outras grandes empresas que usam tecnologias já envelhecidas (como a indústria automotriz dos motores de explosão) devem encarar planos de restruturação e de redução. Milhões de pequenas e médias empresas receberam o golpe mais duro. Suzanne Clark, presidente da Câmara de Comércio dos EUA, expressou no site desta instituição que: “nos EUA há quatro milhões de pequenos negócios, 13% dos 31 milhões de pequenos empreendedores nos EUA, que esgotaram as ajudas que lhes foram dadas para conseguirem respirar e que precisam de nova ajuda”[10]. É o que se chamou de “empresas fantasmas”. E, no entanto, não é nítido quantas delas sobreviverão com o “pacote de ajuda” que o governo Biden promove.

Se isto ocorre nos EUA, reproduz-se com grande impacto em países com muito menor capacidade de intervenção do Estado e dos governos. Em artigo de julho passado é citada uma previsão da CEPAL sobre que os efeitos económicos da pandemia provocariam “o encerramento de 2.700.000 empresas” na América Latina e que as mais afetadas seriam as pequenas e médias empresas[11].

O keynesianismo

Um dos problemas da atual recuperação que mais preocupa os economistas burgueses e os organismos internacionais é a dinâmica inflacionária que apresenta, tanto nos países imperialistas como no resto do mundo. Alguns deles alertam inclusivamente sobre o risco de estagflação. Expliquemos este conceito.

Historicamente, no capitalismo, o primeiro momento da fase ascendente de um ciclo curto tendia a ser inflacionário (aumento de preços) porque a demanda em crescimento superava uma oferta que vinha “oxidada” como resultado da fase descendente anterior. Pelo contrário, a fase descendente tendia a ser deflacionária (baixa de preços) pelo excesso de oferta.

Na década de 1970, ocorreu um fenómeno novo: uma situação de estancamento (ou de queda) da economia combinava-se com uma inflação persistente (a estagflação). Os economistas monetaristas “ortodoxos” da chamada Escola de Chicago (como Milton Friedman) afirmaram que isto era resultado de várias décadas de injeções monetárias e de crédito das políticas keynesianas para reforçar a procura[12] e que era necessário reequilibrar a massa de dinheiro e crédito circulante a níveis de acordo com a produção. Foi a base teórica que levou a deixar de lado as políticas keynesianas e orientou os duros planos de austeridade que os governos começaram a aplicar desde finais dessa década.

A partir da fortíssima crise económica internacional iniciada em 2007-2008, ganharam novo prestígio, especialmente nos EUA, economistas burgueses neokeynesianos como Joseph Stiglitz e Paul Krugman, que influenciaram o governo de Barack Obama. Na realidade, Obama não aplicou uma política keynesiana clássica (destinada a promover o investimento e o consumo para quebrar a dinâmica da crise), mas concentrou-se em salvar os grandes bancos na dinâmica de quebra e empresas como a GM, financiando o custo desta ajuda através do aumento da dívida pública (emissão de títulos do Tesouro).

O neokeynesianismo de Biden

A principal medida económica do governo de Donald Trump foi uma grande reforma impositiva que diminuiu de 35 para 21% a taxa fixa que as empresas e os setores de maiores rendimentos pagavam, em fins de 2017[13]. Com um critério “ortodoxo”, que Ronald Reagan já havia aplicado nos anos ’80, afirmava que esta “poupança” seria revertida num aumento do investimento que promoveria o crescimento da economia. No entanto, a dinâmica recessiva da economia mundial iniciada em 2019 e o salto nessa dinâmica de retrocesso que o impacto da pandemia gerou atiraram por terra essas expectativas. Complicando ainda mais o panorama, em 2020 eclodiram por todo o país as rebeliões antirracistas e, embora menos difundida, uma importante onda de greves que o encostaram à parede.

O democrata Joe Biden ganhou as eleições e assumiu a presidência neste panorama e com a tarefa de o desmontar. A ua resposta foi a apresentação ao Congresso de uma política keynesianista, através de vários pacotes escalonados[14]. No artigo citado, destacava-se: “Biden está combinando uma grande injeção de crédito com gastos do Estado financiados através do déficite e destinados tanto a investimentos como a pagamentos diretos a empresas e habitações”.

Numa análise profunda, a política de Biden e as suas diferentes etapas apresentava três níveis de objetivos. O primeiro, contido no pacote inicial de 1,9 biliões de dólares, buscava dar uma resposta à profunda crise económico-social que as rebeliões antirracistas e as greves expressaram; conter a pandemia e o seu impacto e travar (ou pelo menos atenuar) a dinâmica de falência de milhões de pequenas e médias empresas, às quais já nos referimos.

O segundo nível é reforçar a recuperação económica e promover o início de uma onda ascendente de investimentos. Nesse contexto, o terceiro objetivo é mais estratégico: renovar a infraestrutura do país, na perspetiva de uma reconversão parcial da matriz produtiva e tecnológica nos EUA, no âmbito da disputa com o capitalismo chinês.

Até agora, o que ocorreu nos EUA foi a aplicação da primeira parte de um plano que, embora tenha impulsionado uma certa recuperação na queda de 2020, apresenta problemas como a inflação, o que, como vimos, causa preocupação e intensos debates entre os economistas burgueses.

O debate sobre a inflação

O último informe do FMI expressa: “Os preços dos produtores norte-americanos aumentaram com força em agosto, o que sugere ser provável que a alta inflação persista durante algum tempo”. Algumas estimativas indicam que o acumulado anual pode chegar a 5% ou superá-lo, o índice mais alto nos últimos 30 anos[15]. Algo que se repete nas economias imperialistas europeias: estima-se que oscilará entre 3 e 4% (o maior índice desde 2011), embora com aumentos muito maiores no custo da energia[16]. No resto do mundo, as perspetivas são mais altas: no Brasil superará 10% em 2021[17] e o México, acumulava quase 5% já em julho passado[18].

Estes níveis de inflação colocam-nos duas questões. A primeira delas é considerar a recuperação que a economia dos EUA vive na sua verdadeira dimensão, um país no qual o cálculo do PIB não é distorcido pelas oscilações do tipo de câmbio em relação ao dólar. Isto significa que, se a estimativa do crescimento nominal do PIB será de 7% e cerca de 5% está determinado pela inflação (aumento de preços de produtos e serviços), o crescimento real da produção material será somente de 2%.

A segunda questão refere-se ao debate em curso entre os economistas burgueses. Alguns deles consideram que, dado um crescimento nominal determinado, se o componente inflacionário supera percentualmente o crescimento real da produção, já estão presentes um elemento e uma dinâmica de estagflação.

É o que o economista heterodoxo Nouriel Roubini caracteriza: “A ameaça de estagflação mostra-se cada vez mais possível. A política económica atual, que combina expansão monetária e de crédito… causará um aquecimento inflacionário. Combinadas, tais dinâmicas de oferta e procura podem gerar estagflação, um aumento geral dos preços e recessão, ao estilo do que ocorreu na década de 1970”[19].

Pelo contrário, o economista neokeynesiano Joseph Stiglitz rejeita esta perspetiva. Ele caracteriza a situação atual como “Leves aumentos da taxa de inflação nos Estados Unidos e Europa”, e expressa que os temores de estagflação “são prematuros”. Considera que “grande parte da pressão inflacionária atual surge dos estrangulamentos de curto prazo do lado da oferta, que são inevitáveis quando se reinicia uma economia que esteve temporariamente fechada…especialmente considerando o excesso de capacidade geral em todo o mundo”[20]. Ou seja, rapidamente se retomaria um processo de crescimento normal não inflacionário.

Esta visão é compartilhada pelo último informe do FMI: “as recentes pressões sobre os preços, em grande parte refletem a evolução incomum relacionada com a pandemia e os desajustes transitórios entre a oferta e a demanda. Prevê-se que a inflação retorne às faixas registradas antes da pandemia na maioria dos países em 2022, uma vez que estas perturbações vão ficando refletidas nos preços”.

Por seu lado, a economista Jayati Ghosh, presidente do Centro de Estudos e Planificação Económica da Universidade Jawaharlal Nehru (Nueva Delhi, Índia) também considera que a estagflação é uma ameaça real, mas essencialmente para os países menos desenvolvidos e os mercados emergentes[21].

A realidade definirá quem tem razão neste debate. Nós opinamos que, por uma combinação de razões, a perspetiva mais provável é a que Roubini destaca. No artigo já citado de Orlando Torres, antecipava-se: “Se os estímulos fracassam em restabelecer a rentabilidade e, portanto, os investimentos capitalistas, o baixo custo do capital eventualmente elevará a inflação”.

Investimentos e rentabilidade

Para o marxismo, a análise da situação presente e as possíveis dinâmicas da economia capitalista baseiam-se em critérios diferentes dos utilizados pelos economistas burgueses. Consideramos que o motor dessa economia é a busca do lucro ou, o que é o mesmo, a acumulação de novo capital. Por isso, o que define essa dinâmica é a quantidade de investimentos produzidos e, intimamente ligada a isso, a rentabilidade do capital investido (o que denominamos de “taxa de lucro”, baseada na relação entre a mais valia extraída e capital investido).

O primeiro pacote de Biden foi de quase 2 triliões de dólares, mais de 8% do PIB nominal do país em 2020. Vimos que o crescimento nominal do PIB estimado para 2021 é de 7%, que grande parte (5%) é resultado da inflação, e que o crescimento real da riqueza (novo valor produzido) será de 2% somente.

A primeira explicação desta diferença é que a maior parte desse dinheiro não foi destinado a investimentos produtivos. Entre os seus beneficiários, as famílias utilizaram-no para cobrirem algumas dívidas acumuladas e manterem um nível mínimo de consumo. As pequenas e médias empresas também cobriram dívidas e “taparam buracos”. Aquelas empresas e investidores que podiam investir continuam a optar, por ora, por investimentos especulativos, como as ações que integram o S&P 500 da Bolsa de Nova York e, inclusive, variantes como as criptomoedas.

Só uma parte menor do pacote foi para investimentos produtivos. Se analisarmos os informes trimestrais do Bureau of Economic Analysis (BEA) dos EUA vê-se que: “O aumento do PIB [nacional] no primeiro trimestre refletiu a continuidade da recuperação económica, a reabertura dos estabelecimentos e a continuação da resposta do governo relacionada à pandemia da Covid-19”. Em sua análise habitual de como esse acréscimo foi gerado, destaca-se o aumento dos “investimentos pessoais” e o “consumo” como resultado dos dois elementos anteriores. Ou seja, até agora, não se percebe um aumento dos investimentos privados.

Porque é que as empresas que tem capacidade para o fazer, não realizam investimentos produtivos? Tal como dissemos, isto está profundamente relacionado com a rentabilidade do capital investido. No artigo já citado de novembro de 2020, referíamo-nos ao estudo realizado pelo economista marxista britânico Michael Roberts sobre a dinâmica da taxa de lucro nos EUA e reproduzíamos um quadro que mostra, por um lado, a tendência histórica da taxa de lucro em seu descenso e, por outro, uma queda abrupta em 2020. Roberts concluía que a rentabilidade do capital nos investimentos produtivos continua a ser “muito baixa”[22].

A rentabilidade relaciona dois fatores. Por um lado, o volume total de capital circulante; por outro, a massa total de mais-valia extraída na produção (o novo valor produzido num ciclo determinado).  O primeiro fator apresenta um elemento profundamente deformante: o caráter crescentemente especulativo e parasitário do capitalismo, já analisado por Lenin há mais de um século. Isto significa um obstáculo para a recuperação da taxa média de lucro, porque acentua a proporção de capitais não produtivos no volume de capital total. Ou seja, a proporção de capital que não ajuda a gerar nova mais valia, mas sim disputa (com vantagens) a sua apropriação[23].

Por seu lado, a massa de mais-valia extraída na produção é função da produtividade do trabalho. Medida em termos monetários, expressa-se por quanto cada trabalhador produz por cada dólar recebido no salário. A diferença entre o valor total produzido e o salário é a mais valia da qual os burgueses se apropriam.

A verdade é que a produtividade do trabalho nos EUA vem aumentando constantemente nas últimas décadas. Como exemplo, entre março de 2020 e março de 2021, houve um salto relativamente a anos anteriores e cresceu 5%, entre outros elementos, pela aplicação das novas tecnologias[24]. Outros fatores que aumentam a produtividade real são a perda de conquistas trabalhistas, a precarização e a perda de poder aquisitivo dos salários diante da inflação.

Este aumento da produtividade expressa-se, evidentemente, no aumento da massa de mais valia extraída. Entretanto, a rentabilidade capitalista não se recupera a “níveis satisfatórios” porque o volume cada vez maior de capital circulante, com peso crescente do capital especulativo e parasitário (que não produz novo valor, mas disputa a sua apropriação) “devora” massas cada vez maiores de mais-valia e, com isso, joga para baixo a taxa média de lucro. Uma tendência especulativa e parasitária que só parece ser reforçada.

A verdade é que o primeiro pacote de medidas de Biden, embora tenha conseguido, até agora, acalmar a explosiva situação social de 2020 e travar a dinâmica negativa da economia, não conseguiu espoletar uma “onda de investimentos”.

Quem pagará a conta?

Neste ponto, cabe perguntar quem pagará o custo do plano do governo Biden e suas diferentes etapas. Neste primeiro pacote, a resposta é evidente: centralmente, foi financiado através de um aumento do déficit fiscal pela via da emissão de títulos do Tesouro, um mecanismo pelo qual o imperialismo norte-americano “aspira” riquezas de todo o mundo[25].

A dívida pública dos EUA alcançou 102,3% do PIB no exercício fiscal que se iniciou em 1/10/2020 e termina em 30/9/2021. Ou seja, isso ocorreu durante a vigência do último orçamento federal votado durante o governo de Donald Trump e não inclui o pacote de estímulo votado pelo governo de Biden, em fevereiro passado. Por isso, o Gabinete de Orçamento do Congresso (CBO, nz sua sigla em inglês) prevê que essa dívida pública continuará a crescer nos próximos anos até chegar a cerca de 107% do PIB[26]. Por outras palavras, quem acaba pagando são os trabalhadores e povos dos demais países através da compra de títulos norte-americanos que os seus governos e burguesias realizam.

Entretanto, este mecanismo tradicional de financiamento dos governos dos EUA só cobriria uma parte do total dos pacotes propostos por Biden. Por isso, propôs, também, uma modificação da atual taxa fixa fiscal que as empresas pagam (reduzida por Trump de 35 a 21%). Esta imposição fixa seria substituída por uma estrutura gradual: as companhias que ganhem menos de 400.000 dólares ao ano pagariam 18%, as que tenham benefícios de até 5 milhões 21% e as que superem esses 5 milhões 26,5%[27].

Essa taxa fiscal para as empresas maiores está abaixo dos 28% de que Biden falou durante a campanha eleitoral (muito mais ainda da existente antes de Trump: 35%). Porém, ainda assim, significa pagar mais do que pagam agora. A verdade é que a maioria dessas grandes empresas não está disposta a pagar mais ou, pelo menos, quer reduzir esse aumento ao máximo.

Isto expressa-se tanto na oposição dos “economistas ortodoxos” como na dos legisladores republicanos, e inclusive da ala direita dos democratas. Por isso, para obter aprovação parlamentar, o governo Biden deve negociar cada etapa do seu plano e oferecer a redução de objetivos, como esta taxa fiscal [28]. Uma redução que vai erodindo a eficiência e a força do plano no seu conjunto.

Uma das primeiras “vítimas” destas negociações foi o aumento do salário mínimo para 15 dólares por hora, prometido durante a campanha eleitoral. Uma reivindicação que esteve muito presente na última década nas lutas dos numerosos trabalhadores do escalão mais baixo da estrutura salarial e de diversos sindicatos[29]. Esclarecemos que, pela inflação, se fosse conseguido hoje, esse salário mínimo representaria um poder aquisitivo muito menor do que quando essa reivindicação foi lançada.

Porém, mesmo assim, setores importantes da burguesia norte-americana negam-se a concedê-lo e o salário mínimo continua 7,25 dólares por hora. O governo Biden deixou de lado a sua promessa e o aumento para 15 dólares foi eliminado na aprovação do primeiro pacote, em fevereiro passado[30]. Muitos analistas consideram que, na realidade, tratou-se de uma promessa eleitoral “para a tribuna”, porque sabia que não seria aprovada no Congresso.

Fora isto, a verdade é que aqui aparece um segundo “pagador da conta” dos pacotes: os trabalhadores norte-americanos, em especial os de salários mais baixos, cujo poder aquisitivo está cada vez mais deteriorado pela inflação.

China: tormenta no horizonte?

A China é uma das principais impulsionadoras da recuperação: foi a única das grandes economias que terminou com um crescimento do seu PIB nominal em 2020 (2,3%) e tem uma das melhores previsões para 2021 (8,1%, só superada pela Índia).

Isto expressa-se num grande crescimento do seu comércio externo em 2021 (24,5%, o maior em 10 anos), tanto nas suas exportações (que assim cobrem uma parte dos suprimentos que, como vimos, estão “travados” noutros países) como nas importações que, dessa forma, ajudam a aliviar a situação dos países provedores de alimentos e matérias primas. Também mantém um bom nível de captação de investimentos estrangeiros, assim como a realização dos seus investimentos noutros países, em especial na chamada “Rota da Seda”. Os meios de comunicação social e analistas imperialistas festejam esta dinâmica com títulos como “A China continuará a estabilizar a recuperação económica mundial”[31].

Entretanto, por detrás deste “panorama dourado” aparecem grossas nuvens de tempestade. A principal de todas é a crise do Evergrande Group, o segundo maior promotor imobiliário do país (por número de vendas), especializado em residências para setores médios e altos[32]. A partir deste setor estendeu-se a outros ramos, como os carros elétricos, a saúde e até um clube de futebol. O crescimento explosivo deste grupo foi financiado com um passivo (dívidas) que hoje é recorde para uma só empresa: 300 biliões de dólares.

A verdade é que, hoje, os ativos do grupo não chegam sequer para pagar as dívidas de curto prazo, e as suas ações já perderam 80% do valor de mercado. Nesse marco, possui o recorde de queixas apresentadas pelos seus empreiteiros nos tribunais chineses[33]. Ao mesmo tempo, estima-se que, se a empresa falir, cerca de 1.500.000 clientes poderão perder os seus depósitos em casas que a Evergrande ainda não construiu[34].

Vejamos alguns dados: a construção civil e o setor imobiliário respondem diretamente por 7% do PIB chinês, uma cifra que chega a quase 25% considerando os fornecedores diretos e indiretos. Tem sido um dos motores do crescimento da economia chinesa e da criação de emprego[35]. Muitos analistas consideram que o setor, na realidade, foi “inflado” artificialmente através de créditos e empréstimos estatais e privados. Algo que já se tinha expressado na crise que este setor viveu em 2015[36].

Na realidade, o problema é muito maior que empreiteiros que não recebem ou clientes que não terão as suas casas. Por um lado, a queda de Evergrande pode ter um “efeito cascata” sobre todo o setor imobiliário e da construção. Por outro, a maior parte das dívidas do grupo é com bancos e instituições financeiras chinesas, por isso uma cobrança geral das suas dívidas (ainda mais estendendo-se a outras grandes empresas imobiliárias) poderia impactar todo o sistema financeiro do país.

Por isso, muitos dizem que uma “queda livre” deste grupo poderia ter o mesmo efeito potencializador de uma profunda crise na economia chinesa como teve a queda do banco Lehman Brothers nos EUA, em 2008[37]. Pelo seu tamanho e importância, uma crise deste tipo não teria impacto só na China, mas seria um golpe muito duro para toda a economia capitalista mundial e para a débil recuperação em curso.

Todos os burgueses do mundo estão esperando para ver o que o governo chinês fará. Nesse marco, os analistas veem três cenários possíveis. O primeiro é o de uma “queda livre”, com as consequências potenciais que já analisamos. O segundo é o de uma “queda amortecida”, com ajuda do governo chinês para “reduzir os danos” (é a perspetiva que parece ser a mais provável). O terceiro é uma intervenção plena do governo de Xi Jinping  para “resgatar” o grupo. Qualquer que seja a alternativa, estas “nuvens carregadas” estão no horizonte e a “tempestade” é uma possibilidade real.

Pandemia e Afeganistão

Vejamos agora como incidem sobre a dinâmica económica dois fatores “externos”. O primeiro deles (a pandemia) já mostrou no ano passado um impacto similar ao de uma guerra, que o imperialismo e a burguesia buscaram reverter através da criminosa política do “novo normal”. Em diversos artigos denunciamos a mentira do anúncio do “fim da pandemia” e, mais recentemente, a sua substituição pela sua “mitigação” (reduzi-la a níveis “toleráveis” para a sociedade)[38].

Mas a verdade é que a pandemia persiste, não somente com níveis muito altos nos países de vacinação muito escassa como também nos próprios países imperialistas, onde volta como um bumerangue através das novas variantes do vírus. Por isso, até os organismos financeiros internacionais alertam sobre o impacto que isto terá nas economias emergentes, e pede a criação de um fundo internacional para o desenvolvimento de um plano mundial de vacinação, porque: “Um ritmo de vacinação mais lento do que o previsto permitiria que o vírus tenha ainda mais mutações”.  Tudo isto agrega “incertezas” à dinâmica da economia mundial.

Outro facto de peso na realidade internacional tem sido a crescente consumação da derrota militar e política dos EUA e outras potências imperialistas na guerra do Afeganistão. Tal como é assinalado na declaração da LIT-QI, esta derrota debilita o imperialismo e pode alentar lutas do movimento de massas no mundo[39]. É impossível medir o impacto económico que este facto acabará tendo. Entretanto, utilizando a linguagem do FMI, é indubitável que agrega “incertezas” ao início de uma forte onda de investimentos dos capitalistas e à dinâmica geral da economia mundial.

Aprofundemos a questão da luta de classes no mundo. Vamos partir de uma consideração: a pandemia gerou um salto na deterioração das condições de vida do movimento de massas no mundo. Uma de suas expressões mais graves é o aumento da “pobreza extrema” (miséria) e da “insegurança alimentar” (fome): segundo um estudo do Banco Mundial realizado em outubro de 2020 (ou seja, quando a recuperação já tinha começado), esse ano terminaria com um saldo de 150 milhões de pessoas no mundo que desceriam para essa categoria[40].

Sem chegar a tal extremo, em todo o mundo a pobreza aumentou, o desemprego, a perda do poder aquisitivo dos salários, a deterioração das condições de trabalho, e a precarização. Uma realidade que quase não foi revertida pela recuperação em curso: lembremos a negativa da burguesia norte-americana em aumentar o salário mínimo.

Esta situação que descrevemos tem tido consequências contraditórias na classe operária e nas massas. Em alguns casos, levou-as a retroceder e passar claramente à defensiva. Noutros casos, a sensação de “intolerabilidade” por parte dos trabalhadores e das massas gerou explosões contra governos e regimes, como ocorreu no Paraguai e na Colômbia.

Como se combinarão estas duas tendências contraditórias num futuro próximo? A verdade é que a burguesia tem muito temor de que se imponha a tendência “explosiva”: em vários artigos do seu blog, o FMI alerta sobre o perigo de “um grande mal estar social” que leve a “uma explosão social”[41].

Como em outras questões que deixamos em aberto neste artigo, será a realidade a mostrar-nos qual das alternativas ocorrerá. O que é certo é que a luta de classes (mais ainda caso se estenda ao período seguinte) pode ser um entrave na necessidade burguesa de recuperar a sua taxa de lucros e de impulsionar um novo ciclo de investimentos. Nos seus resultados (vitórias e derrotas) se joga grande parte da dinâmica da economia. Ao mesmo tempo, existe a possibilidade de lutas mais generalizadas e profundas, que avancem no caminho da destruição deste sistema capitalista imperialista cada vez mais retrógrado e desumano e na sua substituição por um sistema muito mais racional e humano, através da revolução socialista.

Alejandro Iturbe

Artigo publicado originalmente aqui

[1] https://www.elconfidencial.com/economia/2021-09-03/eeuu-crea-muchos-menos-empleos-de-lo-esperado-en-agosto_3269422/ y https://www.bls.gov/news.release/empsit.nr0.htm

[2] https://litci.org/es/hacia-donde-va-la-economia-mundial/

[3] https://www.imf.org/es/Publications/WEO/Issues/2021/03/23/world-economic-outlook-april-2021 y https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-01/banco-mundial-preve-salto-de-4-no-pib-global-em-2021#:~:text=A%20economia%20global%20deve%20crescer,1%2C6%25%20neste%20ano.

[4] https://www.imf.org/es/Publications/WEO/Issues/2021/07/27/world-economic-outlook-update-july-2021https://www.oecd.org/perspectivas-economicas/ https://www.bancomundial.org/es/publication/global-economic-prospects

[5] Ver quadro incluído no último informe trimestral do FMI na referência citada na nota [4].

[6] https://www.elblogsalmon.com/indicadores-y-estadisticas/recuperacion-forma-k-economia-rota-ganadores-perdedores

[7] https://www.ey.com/es_sv/covid-19/las-empresas-ganadoras-en-tiempos-de-pandemia

[8] https://magnet.xataka.com/en-diez-minutos/50-empresas-representan-28-economia-mundial-capitalismo-hiperconcentrado

[9] https://www.ambito.com/tecnologia/apple/cuanto-ganan-los-gigantes-tecnologicos-minuto-n5191120

[10] Citado no artigo referido na nota [6].

[11] https://www.dw.com/es/el-coronavirus-provocar%C3%A1-el-cierre-de-27-millones-de-empresas-en-am%C3%A9rica-latina/a-54034052

[12] John Maynard Keynes (1883-1946) foi um economista britânico cujas elaborações orientaram a política econômica e monetária mundial no segundo pós guerra, em especial seu livro Teoría general del empleo, el interés y la guerra.

[13] https://www.france24.com/es/20171219-reforma-tributaria-donald-trump-impuestos

[14] Ver o artigo “Keynesianismo imperialista en tiempos de pandemia” de Orlando Torres, na revista Correo Internacional n.° 25 (abril de 2021), disponível em https://litci.org/es/especialescorreo/.

[15] https://www.eleconomista.es/economia/noticias/11322656/07/21/La-inflacion-no-da-respiro-a-la-Fed-el-IPC-general-sube-hasta-el-54-y-el-subyacente-toca-maximos-de-1991.html

[16] https://www.eleconomista.es/economia/noticias/11377830/09/21/La-inflacion-aumenta-y-la-eurozona-marca-maximos-desde-2011-al-3.html

[17] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/08/30/analistas-do-mercado-sobem-para-727percent-estimativa-da-inflacao-em-2021-e-veem-alta-menor-do-pib.ghtml

[18] https://expansion.mx/economia/2021/08/09/la-inflacion-se-ubica-en-5-81-durante-julio-impulsada-por-gas-lp-y-alimentos

[19] ROUBINI, Nouriel, The stagflation threal is realProject Syndicate, 30 de agosto de 2021, em: https://www.project-syndicate.org/commentary/mild-stagflation-is-here-and-could-persist-or-deepen-by-nouriel-roubini-2021-08?barrier=accesspaylog#:~:text=There%20is%20a%20growing%20consensus,be%20alleviated%20in%20due%20course.

[20] https://www.contrapunto.com.sv/la-falacia-de-la-inflacion/

[21] GHOSH, Jayati; Specter of stagflation hangs over emerging marketsForeign Policy (5 de agosto de 1921), em https://foreignpolicy.com/2021/08/05/emerging-markets-stagflation-inflation-food-commodities-fiscal-monetary-stimulus-money-printing-developing-world/

[22] O quadro foi tomado de https://www.nuevatribuna.es/articulo/global/notas-reflexiones-crisis-capitalista-2020-2021/20201004101328179783.html. Para uma visão mais geral das análises de Roberts ver a entrevista publicada nesta página em: https://litci.org/es/la-larga-depresion-entrevista-a-michel-roberts/

[23] Sobre esta questão, sugerimos ver o livro O sistema financeiro e a crise económica mundial de Alejandro Iturbe, Editora Sundermann, San Pablo, Brasil, 2009.

[24] https://cincodias.elpais.com/cincodias/2021/04/13/opinion/1618316639_651412.html

[25] Sobre este ponto, recomendamos ler o Capítulo 8 (EE.UU., epicentro de la crisis actual) do livro citado na nota [23], especialmente o subtítulo “Los déficits gemelos”.

[26] https://www.eleconomista.es/economia/noticias/11045864/02/21/La-deuda-publica-de-EEUU-superara-este-ano-el-tamano-de-la-economia-segun-la-CBO.html

[27] https://www.infobae.com/america/eeuu/2021/09/14/democratas-proponen-abolir-parcialmente-la-reforma-tributaria-de-donald-trump-y-subir-los-impuestos-a-los-ricos-y-a-las-empresas/

[28] https://www.eleconomista.com.mx/internacionales/Biden-ofrece-negociar-el-aumento-de-impuestos-a-empresas-en-busca-de-apoyo-de-los-republicanos-20210603-0081.html

[29] Ver, por exemplo, o artigo de 2014: https://litci.org/es/la-recuperacion-economica-y-la-lucha-por-un-salario-minimo-de-15-dolares-por-hora/

[30] https://www.eleconomista.es/economia/noticias/11074145/02/21/Biden-se-queda-sin-la-subida-del-salario-minimo-a-15-dolares-en-su-paquete-de-estimulo.html

[31] https://www.brasil247.com/mundo/china-continuara-sendo-estabilizador-da-recuperacao-economica-mundial

[32] Sobre esta questão ver o artigo de Marcos Margarido em https://litci.org/es/probable-colapso-de-la-evergrande-deja-al-descubierto-el-capitalismo-chino/

[33] Ver artigo do Financial Times em ft.com/content/e7dac606-1d25-4034-99af-aafab24d5a4d

[34] https://time.com/6099000/china-evergrande/

[35] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/09/20/crise-na-evergrande-por-que-o-mercado-esta-em-alerta-e-quais-as-possiveis-consequencias-para-o-brasil-e-o-mundo.ghtml

[36] Sobre esta questão, recomendamos ler: https://litci.org/es/certezas-e-interrogantes-que-plantea-la-crisis-economica-en-china/

[37] https://www.ambito.com/negocios/china/la-crisis-evergrande-el-lehman-brothers-chino-que-pone-riesgo-los-mercados-del-mundo-n5279216

[38] Ver, entre outros artigos publicados neste site: https://litci.org/es/66832-2/

[39] Ver, entre outros artigos publicados neste site: https://litci.org/es/66669-2/

[40] https://news.un.org/pt/story/2020/10/1728962

[41] https://www.cadtm.org/Tras-la-pandemia-el-FMI-advierte-del-peligro-de-una-explosion-social