A 25 de outubro de 1917, pelas 21h45, o cruzador Aurora, outrora uma das joias da coroa czarista e fundeado na baía de Petrogrado, tomado pela sua tripulação, assinalou, de forma inequívoca, a insurreição dos operários, soldados e marinheiros da então capital russa com o troar dos seus canhões apontados ao Palácio de Inverno, onde se encontravam reunidos os membros do governo provisório. O bombardeamento do Palácio de Inverno, a que se juntou a guarnição da fortaleza de Pedro e Paulo, também dirigida pelo Comité Militar Revolucionário de Petrogrado, deu início à transferência do poder da burguesia para as mãos dos 670 delegados reunidos no II Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de toda a Rússia. O partido bolchevique, dirigido por Lenine e Trotsky, tinha convencido os seus delegados a assaltar os céus, quer dizer, iniciar a Revolução Socialista…
A 12 de novembro de 1975, os operários da construção civil, em greve pelo aumento do salário mínimo nacional, cercaram o Palácio de S. Bento, sede da Assembleia Constituinte eleita a 25 de abril do mesmo ano e do VI Governo Provisório, e sequestraram durante cerca dois dias os seus deputados e governantes. No dia 16, uma enorme manifestação de operários e soldados convocada para o Palácio de Belém pela coordenação das comissões de trabalhadores da cintura industrial de Lisboa (Intersindical Nacional (CGTP)) ouve da parte do presidente da república Costa Gomes o seu desabafo contra a “guerra civil” que “só traz desgraça, ruína, ódio, sacrifícios…”. Dias depois, o mesmo Costa Gomes obteria de Álvaro Cunhal e da Intersindical Nacional a garantia de que desmobilizariam os trabalhadores face ao crescendo da polarização e tensão nas Forças Armadas e eventuais insubordinações. Na tarde de 21 de novembro, 170 novos recrutas do Regimento de Artilharia situado em Lisboa, Olivais, fazem o tradicional juramento militar nos seguintes termos: “Nós, soldados, juramos ser fiéis à Pátria e lutar pela sua liberdade e independência. Juramos estar sempre, sempre, ao lado do povo, ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador. Juramos lutar (…) pela vitória da Revolução Socialista”.
Na manhã de 25 de novembro, os paraquedistas da Base Escola de Tancos, que tinham sido usados pela sua hierarquia no dia 7 para destruir o emissor da Rádio Renascença da Igreja Católica, mas então ocupado pelos seus trabalhadores, insubordinaram-se e ocuparam algumas bases aéreas. Pelas 15h30 de 25 de novembro, Otelo Saraiva de Carvalho apresentou-se no Palácio de Belém perante o seu superior hierárquico, general Costa Gomes, esvaziando assim as expectativas dos oficiais insubordinados de que encabeçasse uma resistência consequente à ação da hierarquia militar (1) organizada no Conselho da Revolução. Neste mesmo dia, este mesmo órgão declara o ‘estado de sítio’ na região de Lisboa, completando assim a operação militar que visava afastar os setores populares e combativos das unidades militares rebeldes ou mesmo de mobilizações de rua…
No dia 26, já com a ‘nova ordem’ estabelecida nos quartéis, um dos vencedores, o coronel Melo Antunes, considerado o “ideólogo” do “Grupo (militar) dos Nove” e também conselheiro da Revolução, faria o famoso discurso generoso dos vencedores: “o país estava em desagregação… não havendo estruturas de autoridade… A parte sã das Forças Armadas conseguiram controlar a situação, ultrapassando a sublevação dos paraquedistas. Presto a minha profunda homenagem ao Regimento dos Comandos e, em particular, ao seu comandante Jaime Neves… As críticas ao VI Governo e à sua composição não têm razão. A participação do PCP na construção do socialismo é indispensável, assim como a participação de todos os principais partidos com o MFA na sociedade nova, num verdadeiro projeto nacional e patriótico… (…).” (2)
No 25 de abril do ano seguinte, com as primeiras eleições legislativas, o país daria um novo salto para a normalidade burguesa. Em março de 1977, o governo de Mário Soares iniciaria as negociações para a adesão à então CEE (anos depois UE). A 25 de novembro de 2016, em comemorações oficiais, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa afirma que naquela data, em 1975, “as Forças Armadas criaram condições para que os portugueses pudessem viver com um Estado de direito democrático” …
É preciso voltar a estudar as revoluções russa e portuguesa
O 25 de novembro de 1975 pôs fim a um dos mais vivos processos da história portuguesa, do qual os trabalhadores foram os principais protagonistas. A 41 anos desta data, muitos dos debates por ela despoletados continuam atuais. Os militantes e ativistas que procuram um caminho para a revolução portuguesa têm o desafio de voltar a estes debates para, conhecendo o seu passado, voltarem a escrever novos capítulos na história da luta de classes em Portugal.
Mas porquê falar sobre os acontecimentos ocorridos há mais de 40 anos – em novembro de 1975 – começando com uma referência à grande Revolução Socialista de outubro de 1917? Não é, com certeza, uma mera formalidade sugerida pelo centenário em curso. Tal como em muitos outros campos da atividade humana, o estudo e a aprendizagem dos novos processos faz-se por analogia – esta é por vezes mesmo inevitável – com os antigos processos e conclusões. E quando se trata de acontecimentos de repercussão histórica e mundial, o (re)estudo é obrigatório para os militantes da causa socialista. Se para a revolução socialista vitoriosa de 1917 o seu estudo pode ter como suporte inúmeros documentos e análises publicados praticamente desde o seu eclodir – muitos dos quais pelos seus principais protagonistas e líderes, como Lenine e Trotsky –, para os acontecimentos de 25 de novembro, os últimos anos têm sido profícuos na publicação, aliciante e louvável, de novos ensaios, análises, investigações, com certeza elaborados a partir de diversos posicionamentos políticos, mas quase todos atestando a enorme tensão que se acumulava em cada acontecimento, hora a hora, dia a dia, em 74-75. Afinal, pese embora o seu desfecho, naqueles anos marcados por intensas mobilizações operárias e populares, 15 anos antes da queda do muro de Berlim, já se jogava, num país fundador da NATO, a estabilidade mundial e europeia tão cuidadosamente erguida no pós II Guerra Mundial entre o imperialismo e a burocracia estalinista instalada sobre os retrocessos da revolução socialista de 1917. Nahuel Moreno, o principal fundador da corrente marxista revolucionária hoje organizada na Liga Internacional dos Trabalhadores – e cujos primeiros passos em Portugal foram dados na revolução de 74-75 – nas primeiras linhas do seu principal documento sobre a revolução portuguesa, escrito em julho de 1975, referia que “Todo o movimento de esquerda coincide em que Portugal é, hoje em dia, um dos principais focos revolucionários do mundo e, sem dúvida, o eixo da revolução europeia. Para muitos de nós é, claramente, o ponto mais sensível da luta de classes a nível internacional”. Em seguida, considerava que a comparação entre a revolução portuguesa e a revolução russa é uma “comparação feliz”.
Sem honra nem glória
As “fotografias” referidas mais acima tentam revelar, nos limites deste texto, as potencialidades das forças operárias e populares, a fantástica tensão social e política acumulada e, por fim, o drama, a traição e também o grotesco presentes nos acontecimentos do ’25 de novembro português’. Com o seu exército colonial-imperialista em desagregação como resultado da vitoriosa luta revolucionária dos povos das suas ex-colónias; derrotadas aparatosamente as suas tentativas de reconstituição e adaptação às novas circunstâncias de setembro de 1974 e 11 de março de 1975; encurralada por um movimento operário e popular que se radicalizava dia após dia e aprendia de forma acelerada a construção de um poder alternativo genuinamente seu; a grande burguesia teve que chamar à colaboração e negociação os principais partidos reformistas – o PS e PC – e confiou à oficialidade “sã” das forças armadas a tarefa de impor pela via da força a ordem nos quartéis contra as “esquerdas militares”. Estas, apesar da sua expressiva força militar, mas sem “Comité Militar Revolucionário” ou “Congresso de Sovietes” a quem se submeter, acabaram por sucumbir sem honra nem glória.
‘Todo o poder ao MFA’ ou ‘todo o poder às comissões de trabalhadores’?
Se o PS, com influência junto das camadas populares e setores intermédios da burguesia, intervinha nos Governos Provisórios representando a social democracia europeia e os seus governos imperialistas, o PCP, por seu turno, com maior inserção junto da classe trabalhadora, militou para o “congelamento” da Revolução, respondendo deste modo aos interesses mundiais da burocracia soviética, que, em permanente negociação com o imperialismo, viu novamente reconhecido, na Conferência de Helsínquia que terminara em Agosto de 1975, o seu papel de parceira na “paz mundial” – quer dizer, estabilidade dos estados e fronteiras europeias… Foi com aquele objetivo que os principais dirigentes do PCP – incluindo Álvaro Cunhal – participaram nos primeiros quatro governos provisórios burgueses em coligação com o então PPD (PSD), PS e MFA. A participação do PCP de Jerónimo de Sousa na atual maioria governativa não é, pois, uma originalidade…
Mas o que a comparação entre a grande Revolução Socialista de outubro de 1917 e a revolução operária portuguesa de 1974-1975 faz destacar pela sua radical diferença é a ausência em Portugal de um partido operário revolucionário, ao contrário da Rússia de 1917. Em Portugal, a generalidade dos partidos, de massas ou minoritários, procuravam um sector do MFA mais ou menos “progressista” e comprometido com os governos burgueses provisórios que os trabalhadores deviam seguir; na Rússia, o partido bolchevique levantou a exigência ‘Abaixo o governo provisório, todo o poder aos sovietes!’. A expressão máxima desta exigência foi a proposta de que, a 25 de outubro de 1917, os 670 delegados reunidos no II Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de toda a Rússia tomassem o poder, como sucedeu.
É um facto que a construção de um partido marxista revolucionário voltou a estar atrasada – e continua a estar… – face à Revolução Operária portuguesa, e em particular, face à crise revolucionária do outono de 1975. Novamente, é Nahuel Moreno que nos lembra a importância do programa revolucionário: “Só o trotskismo tem tido uma política revolucionária em Portugal. (…) A essência do nosso programa é a revolução das comissões de trabalhadores e dos comités de soldados contra o governo contrarrevolucionário do MFA-PC-PS e dos seus “idiotas úteis”, os maoístas e ultraesquerdistas.(…) O programa do nosso movimento seguirá como uma sombra o desenvolvimento das comissões de trabalhadores e dos comités de soldados (…).”. É discutindo estas memórias e trazendo de volta velhos debates que poderemos construir um futuro para a revolução portuguesa. O Em Luta pretende contribuir para esse futuro.
(…)
Quando a nossa festa s’estragou
e o mês de Novembro se vingou
eu olhei p’ra ti
e então entendi
foi um sonho lindo que acabou
houve aqui alguém que se enganou
(…)
Quando finalmente eu quis saber
Se ainda vale a pena tanto crer
Eu olhei para ti
Então eu entendi
É um lindo sonho para viver
Quando toda a gente assim quiser
Tenho esta viola numa mão
Tenho a minha vida noutra mão
Tenho um grande amor
Marcado pela dor
E sempre que Abril aqui passar
Dou-lhe este farnel para o ajudar
(…)
José Mário Branco, Eu vim de longe