Em visita de Estado ao Senegal, o PR disse que “Portugal reconheceu a Escravatura quando a aboliu em 1761 em partes do seu território”, aderindo, assim, “a um ideal humanista (…) virado para o futuro”. A afirmação não só é falsa como reforça a narrativa, ainda dominante, sobre a suposta excecionalidade do colonialismo português.
As declarações de Marcelo Rebelo de Sousa são um branqueamento da história de Portugal, da Escravatura e dos Descobrimentos precisamente num local – ilha de Gorée – onde largas centenas de escravos eram enviados para os seus infernos respetivos. Ao invés de apresentar um pedido de desculpas – ainda que protocolar – pelo papel de Portugal no tráfico negreiro, o PR preferiu destacar o carácter “humanista” de Portugal ao abolir essa realidade “injusta” e “condenável” em partes do seu território em 1761, por decreto do Marquês de Pombal, embora reconhecendo que só em meados do século XIX esta tenha sido oficialmente abolida em todo o território.
O mito da abolição da escravatura
Ora, o Marquês de Pombal – que fez fortuna com a sua empresa de trabalho escravo, a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão – decretou em 1761, não a abolição da escravatura, mas a proibição de importação de novos escravos para Portugal, Madeira e Açores, continuando a ser escravo quem já o era, bem como os seus filhos. No resto do “Império Português”, tanto a escravatura como o tráfico negreiro continuaram a ser legais até 1836 e amplamente praticados e promovidos – com a cumplicidade do Estado – até ao final do século XIX.
Na verdade, a barbárie escravocrata portuguesa continuou em África sob vários disfarces, todos eles legais, até ao século XX. São disso exemplo o trabalho correcional gratuito e o regime de trabalho forçado por via das cooperativas de angariação de serviços “indígenas” e, mais tarde, do rapto da juventude urbana nas famosas rusgas protagonizadas nos subúrbios de Luanda.
O mito da excecionalidade do colonialismo português
Contrariamente ao que afirmou o PR, a relação de Portugal com a escravatura e o tráfico negreiro nada teve de humanista ou pioneiro. Aliás, é hoje inegável a importância de ambos para a afirmação do projeto capitalista das principais potências ocidentais, hoje hegemónico. Permitiram, desde logo, uma enorme circulação e acumulação primitiva de capital por parte das burguesias que geriam os monopólios coloniais e, consequentemente, a economia das “Metrópoles”.
Por outro lado, a necessidade de justificar o genocídio e sequestro de milhões de seres humanos, elevou o Racismo ao estatuto de aparato ideológico. Inicialmente difundido nos meios académicos europeus pelos mais eloquentes pensadores, rapidamente se impregnou nas sociedades europeias, dividindo, até hoje, a classe trabalhadora internacional em branca e não-branca.
A teoria do lusotropicalismo e da excepcionalidade portuguesa surge, assim, para esconder as verdades sobre o colonialismo português e justificar a continuidade do império colonial perante o movimento de independência em África no pós-Segunda Guerra Mundial.
A necessidade de combater os mitos
No Em Luta refutamos as fábulas do colonialismo bonacheirão português, que visam distanciá-lo do colonialismo dos restantes imperialismos europeus. Pelo contrário, afirmamos que os afamados “Descobrimentos” , materializados na delapidação e pilhagem de continentes e no massacre das suas gentes, e assentes sobre a Escravatura, têm de ser, de uma vez por todas, reconhecidos como um crime contra a Humanidade. É necessário debater os “Descobrimentos” de forma séria com o conjunto da sociedade portuguesa. Só assim podemos avançar para uma outra síntese identitária e refletir coletivamente sobre o drama da Escravatura, do Racismo e das suas ramificações atuais. Em suma, urge combater a mitologia difundida por figuras de destaque, que nos conduzem à ideia irreal do lusotropicalismo, para que possamos saber distinguir uma política enganosa de uma política de enganos.
ANTÓNIO TONGA