A pandemia do Covid-19 tem-nos colocado perante a crua realidade do sistema capitalista. Mesmo nos países que concentram as infraestruturas, os capitais e o desenvolvimento, esse sistema mostra-se incapaz de garantir uma política articulada e coerente de salvaguarda da população trabalhadora. Perante a contradição entre os lucros dos grandes grupos e a saúde da nossa classe, têm ficado escancaradas as prioridades da política mundial.
Desde o início da pandemia, enquanto uns fizeram a quarentena com todas as mordomias, outros foram obrigados a cumprir serviços essenciais (como saúde, supermercados, limpeza urbana e a higienização do centro da cidade), mas também outros não tão essenciais que, dentre muitas áreas, compreendem também a assistência e manutenção dos privilegiados do sistema, os Uber Eats, as empregadas domésticas, etc.
São milhares de trabalhadoras do setor da limpeza e domésticas que veem a sua jornada começar mais cedo nos transportes, que continuam atolados devido à supressão de horários, sem condições sanitárias nem equipamentos de proteção individual (EPIs) que garantam a salvaguarda das trabalhadoras.
Na construção-civil, também se continua a trabalhar nas mesmas condições precárias do pré-Covid, em nome dos lucros de construtoras, em obras que em nada se enquadram numa definição de trabalho essencial. Sabemos pelas carrinhas lotadas de trabalhadores que as normas de proteção e distanciamento também são uma miragem neste setor.
Poderíamos referir, também, setores como a restauração ou a hotelaria, onde os despedimentos sem alternativa têm sido uma regra comum: trabalhadoras e trabalhadores a serem atirados para o total desamparo económico ante as complexidades da pandemia.
Trabalhadores que, fora dos serviços consagrados pelos média como essenciais, estão também a arriscar-se todos os dias, mas sem o reconhecimento e – mais importante – sem garantias mínimas de segurança.
Os setores onde a nossa classe está ainda mais fragilizada têm cor
É a população negra, brasileira, cigana, que, junto da população portuguesa pobre, constitui o grupo que mais tem sofrido com a desigualdade que o vírus vem colocar escancarada.
O capitalismo procura eternizar a desunião através da estratificação da sociedade, o que se reflete também na própria classe trabalhadora. Erguem-se vários degraus nos direitos sociais e laborais: para quem é funcionário público, ou para quem trabalha no privado; para quem é efetivo, ou quem é precário; para quem vive no centro, ou quem vive na periferia pobre. Estratificação esta que é usada para aumentar a exploração sobre o conjunto dos trabalhadores.
Para os imigrantes e racializados, é-nos legado, na esmagadora maioria dos casos, o patamar inferior no que diz respeito a liberdades, direitos e garantias. É nos setores que continuam a laborar com menos condições, ou nos setores onde as políticas de despedimento são mais agressivas, que os trabalhadores imigrantes e racializados estão maioritariamente representados.
Na periferia, as situações de fome, bem como de ameaças ou mesmo concretizações de despejos, tornam-se realidade, como aconteceu no Bairro de Bensaúde, nos Olivais. Por detrás dos anúncios populistas dos governantes e parlamentares, a aplicação das políticas do afamado Estado Social nunca são uma realidade completa para os trabalhadores mais pobres. Existe uma barreira invisível no que toca à universalidade das medidas do Governo, que deixam sempre de fora esta população.
Por que razão a capacidade de resposta do SNS se deteriora ainda mais nos hospitais da periferia? Por que razão são os moradores dos bairros de autoconstrução aqueles que continuam a ver negado o seu direito à habitação digna? Por que razão se procederam a despejos num período de quarentena? Por que razão não se fortalece a capacidade de resposta das associações e juntas de freguesia para poder apoiar as populações nas quais surgem situações de carência, quer seja do ponto de vista alimentar, ou em necessidades de medicamentos? Ou no apoio ao meio escolar, para que se garantam computadores ou tablets aos alunos que não dispões desses equipamentos?
A resposta é: o interesse de classe. O Estado, os Governos e o Parlamento são representantes de uma classe que quer o oposto da nossa. Enquanto, em plena pandemia, os nossos patrões e os seus colaboradores mais próximos procuram amparar ao máximo a queda dos seus lucros, nós procuramos ter o mínimo para comer e ter onde morar. Enquanto o Governo de Costa, apoiado pela direita e com a cumplicidade de BE e PCP, estão preocupados em salvar a economia, nós tentamos salvar a nossa vida e a dos nossos. Para os patrões, o Estado serve para proteger os seus investimentos, para defender a sua superioridade ante os trabalhadores, e também para erguer a teia da exploração que destrói e divide a nossa classe.
O próprio Estado de Emergência, na verdade, só serviu como boia de salvação para o lucro dos médios e grandes patrões! Com recursos a medidas autoritárias, tem-se assegurado que a nossa classe não disponha de qualquer ferramenta para se organizar e responder aos layoffs e despedimentos em empresas com lucros astronómicos nos últimos anos.
Pouco importa aos patrões se, no marco da pandemia, as filhas e filhos dos trabalhadores mais precários não têm acesso igualitário ao ensino à distância, pois para eles o papel social dos nossos jovens é serem os futuros precários, e para esse fim os estudos não são necessários. Também não lhes interessa se os idosos estão desprotegidos ante o Covid, pois estes já não estão em idade ativa e representam uma despesa para o Estado, que procura gastar o mínimo com os seus contribuintes.
Aos bairros mais pobres resta tentarem organizar-se à base da solidariedade interna dos seus habitantes, que muitas vezes não têm mais alternativa do que socializar a sua pobreza. Coloca-se o ónus da proteção e das tarefas do Estado nos trabalhadores. Ainda assim, e apesar de a solidariedade dessas pessoas, das organizações antirracistas e das associações locais serem um exemplo importante de organização da nossa classe, devemos também tirar algumas conclusões disto: os trabalhadores, esmagados pelos desmandos capitalistas, fazem face, de forma limitada, às despesas da pandemia: equipamentos de proteção, guarida, material desinfetante, manutenção da higiene das ruas, prédios, necessidades de apoios monetários, etc. Esta realidade coloca estas pessoas em situações de desigualdade gritantes, tendo em conta que o Estado, por via da sua rede assistencialista (extremamente debilitada e insuficiente), cumpre um papel que piora os desníveis socioeconómicos, inclusivamente entre trabalhadores.
Tal como nas gerações passadas, quando o Estado português barrou o acesso à nacionalidade a dezenas de milhares de negros e negras vindos dos PALOPs ou já nascidos em território nacional, a lógica da exploração do capital impõe que as comunidades racializadas, bem como as comunidades imigrantes de países mais pobres, se eternizem nas funções menos bem pagas e mais exploradas, que sejam como no caso negro e cigano, alvo da perseguição policial e de encarceramento abusivo, que servem para conter toda a espécie de contestação e aspirações.
O que a gestão capitalista da pandemia vem colocar ao conjunto da classe trabalhadora é o espectro de uma nova austeridade, uma quebra nos rendimentos, o aumento do desemprego, do subemprego e da precariedade, que são realidades bem conhecidas dos sectores racializados da classe trabalhadora, bem como das demais comunidades periféricas.
Só a luta muda a vida!
Para os milhares de jovens periféricos, trabalhadores pobres, negras, ciganas, imigrantes, resta-nos saber que também na pandemia só a luta muda a vida. A pandemia coloca-nos o desafio de erguermos redes de solidariedade para, em última instância, evitarmos as situações de fome. O Estado burguês pretende castigar os setores mais pobres e fazê-los suportar o pedaço mais doloroso da próxima crise (como sempre tem sido feito).
O questionamento de um sistema que nos abandona e nos pune à margem deve ser feito na base das nossas próprias forças de classe. Abandonados a fazermos a quarentena com fome, construamos uma alternativa também com as nossas próprias forças! É preciso recusarmos a política capitalista e as falsas soluções que nos propõem uma representatividade na via parlamentar como saída. Este é um sistema que foi erguido sobre nós e contra nós e, por isso, nos momentos em que estamos mais mobilizados, ele também sabe servir-se da nossa imagem e da nossa cor para nos fazer acreditar que as coisas estão a mudar.
Nada mais equivocado, vemos partidos como o BE e o Livre, que, percebendo o duro embate ideológico que o antirracismo coloca na sociedade, se propõem a cavalgar a onda da representatividade, sem terem o compromisso político e programático de lutarem pelos trabalhadores racializados, não sendo capazes de defenderem os trabalhadores negros e negras. Vimos isso mesmo no caso da Jamaica, no qual o Bloco de Esquerda votou, na Assembleia Municipal de Lisboa, uma moção que repudiava críticas à instituição policial, ou, mais recentemente, a postura do partido Livre perante a deputada Joacine Katar Moreira.
Desde o primeiro momento, denunciamos o Estado de Emergência como ferramenta de acentuar o desequilíbrio, pois, por um lado, as tarefas de contenção da pandemia não pressupunham este decreto e, por outro, ele serviu apenas para nos colocar, mais uma vez, face à ditadura dos patrões, à ditadura dos despedimentos, dos layoffs e de todo o tipo de desmando sem alternativa. Relembramos que nenhuma força ou figura parlamentar se opôs ao Estado de Emergência desde o primeiro momento, nem se colocou do lado dos trabalhadores, lutando e alertando contra esta medida. Aos trabalhadores fica o desafio de retirarem as devidas ilações sobre os limites políticos da esquerda parlamentar (Bloco, PAN, JKM, PCP) cujo o discurso por vezes radical, não é igualado com uma cação igualmente radical na defesa dos nossos interesses.
Em tempos de Abril, é importante recordarmos o heroísmo dos nossos avós, que lutaram com o que tinham pela autodeterminação dos seus povos e cuja luta serviu de fagulha para que a Revolução de Abril acontecesse. Este Abril que também é Negro deve inspirar-nos na luta de sobrevivência por conquista de direitos imediatos, mas sobretudo na luta estratégica de toda a classe trabalhadora contra a pandemia capitalista, que se propõe a ser carrasco de largos setores da população trabalhadora mundial, bem como do nosso Planeta.
A luta continua!