Desde o início da pandemia de covid-19, em finais de 2019, vozes levantaram-se contra a política de confinamento iniciada na cidade de Whuan, na China, e adotada, com alguma ou pouquíssima intensidade, pela maior parte dos países afetados. Mais de um ano após o início da disseminação do coronavírus pelo planeta já podemos fazer um balanço parcial dessa tática de combate à doença.
O facto de ter sido a China, o país onde o coronavírus foi detetado pela primeira vez, a começar o cerco a cidades e a impor um rígido confinamento aos seus habitantes despertou uma legítima desconfiança quanto a este método para deter o avanço da pandemia. Afinal, trata-se de uma ditadura, cujas decisões não podem ser questionadas pelos seus cidadãos. Seja como for, um ano depois daqueles tempos sombrios, os habitantes de Wuhan, a cidade chinesa mais atingida pela covid-19, onde morreram quase 4 mil pessoas, puderam comemorar a passagem de ano em grandes aglomerações, apenas fazendo uso de máscaras. Wuhan, com 11 milhões de habitantes, ficou totalmente bloqueada durante 76 dias, assim como outras cidades chinesas, mas, em 19 de março de 2020, o bom resultado tornou-se evidente: nenhum caso havia sido registado nas últimas 24 horas.
O saldo positivo colhido pelo confinamento na China, acompanhado por rastreios, testagens massivas e grandes investimentos em hospitais, não foi exclusivo. Há muitos outros exemplos. No Reino Unido, o quinto país com o maior número de óbitos no mundo, um rígido bloqueio nacional de 49 dias imposto este ano provocou uma queda de 81% no número de infeções. Em Portugal, catorze dias após o início do confinamento em meados de janeiro último, com o fecho de escolas e estabelecimentos comerciais, obrigatoriedade do teletrabalho onde fosse possível e encerramento de fronteiras, entre outras medidas, os casos de infeção caíram para metade. Resultados semelhantes obtiveram, na mesma terceira vaga na Europa, países como Bélgica, França ou Áustria.
No caso de Portugal, a situação era mesmo dramática: na segunda e terceira semanas de janeiro deste ano, o país ocupou o primeiro lugar de novos casos por 100 mil habitantes e de óbitos por milhão de habitantes na Europa. O SNS estava em rutura, não conseguindo dar conta do ritmo dos contágios e, portanto, descendo a capacidade de tratar e salvar vida, o que se repercutiu no crescimento do número de mortes.
No mesmo sentido, a ausência de confinamentos e outras medidas de proteção contra a doença, como a obrigatoriedade do uso de máscaras, fez de países como Estados Unidos e Brasil os campeões em número de casos e óbitos.
A oposição ao confinamento
O centro do combate à pandemia teria necessariamente de passar ou por grandes investimentos (materiais e humanos) em saúde pública – o que os governos capitalistas como o de Costa se recusaram a fazer – ou pela quebra das patentes da vacina, para as tornar acessíveis e gratuitas para todos, o que a UE se recusa a fazer. No entanto, o confinamento é também um método central para combate às pandemias, a situação mundial com o Covid19 assim o tem demonstrado.
Apesar da experiência demonstrar a eficácia do confinamento, há muitos que se opõem a esse método apresentando diversos argumentos. Vamos averiguar alguns deles, começando por aquele que parece ser comum a todo o espectro oposicionista: o confinamento seria um ataque aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Até figuras sinistras como o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em nada preocupados, muito antes pelo contrário, com as liberdades democráticas, tiveram o desplante de criticar as restrições adotadas para conter a pandemia. “Sociedades inteiras estão se habituando à ideia de que é preciso sacrificar a liberdade em nome da saúde”, disse o ministro numa reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Será?
Não parece: o confinamento é uma medida de proteção da vida e da saúde, utilizado, em geral com muita relutância e de forma bastante parcial, pelos governos, mais interessados em não prejudicar a economia capitalista do que salvar vidas. Fecham-se as escolas e o comércio, teatros, cinemas e livrarias, mas não fábricas e empresas não essenciais. Os governos que se negam a adotar medidas para combater a pandemia atentam contra o mais importante direito do ser humano, o direito à vida. O cientista brasileiro Miguel Nicolelis foi categórico: “Neste momento, o Brasil é o maior laboratório a céu aberto onde se pode observar a dinâmica natural do coronavírus sem qualquer medida eficaz de contenção. Todo o mundo vai testemunhar a devastação épica que o SARS-CoV-2 pode causar quando nada é feito de verdade para contê-lo”.
É verdade, sim, que muitos governos aproveitam-se da situação de fragilidade dos trabalhadores e da juventude, impedidos de se reunirem para protestar devido às medidas de confinamento, para desferir violentos ataques às suas conquistas, como foi o caso do governo de António Costa com os despedimentos e drásticas reduções salariais na TAP. Mas essa é apenas uma parte da verdade. A outra parte, no caso da TAP e não só, é que as direções sindicais e políticas dos trabalhadores acomodaram-se à difícil conjuntura para não fazer rigorosamente nada para contrariar os desígnios do governo PS. Lutar é sempre possível, demonstraram-no as mobilizações ocorridas, durante a pandemia, na Catalunha, este ano, contra a prisão do rapper Pablo Hasél, por ter se manifestado contra a monarquia; ou na França, em novembro passado, contra a “lei de segurança global” do governo Macron, que impede a filmagem e difusão das ações repressivas da polícia.
O Estado de Emergência foi também pretexto para a repressão sobre os setores mais oprimidos, como as populações negras e os bairros das periferias, onde a maior parte da sua população tem que lutar para sobreviver. Por isso, fomos desde o início contra o Estado de Emergência como enquadramento repressivo do estado capitalista contra os trabalhadores e os seus direitos democráticos. Mas estar contra a figura repressiva do Estado de Emergência não pode significar negar a importância do confinamento como método de combate à pandemia.
Aumento da pobreza
Outro argumento levantado contra o confinamento é o de que aumenta a pobreza, ao paralisar a economia, provocando a falência de empresas e consequente destruição de postos de trabalho. Mas também aí há uma inversão de fatores. Devido à pandemia, mas também à crise económica prévia, vive-se hoje a maior recessão mundial desde a Segunda Guerra Mundial, com uma queda de 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020, segundo cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em Portugal, o PIB caiu 7,6% e o desemprego afeta, oficialmente, 424 mil trabalhadores, isso sem contar os milhares de pessoas que não estão inscritos nos centros de emprego nem recebem subsídio de desemprego.
Como no argumento anterior em relação à falta de liberdade, o problema do desemprego e da pobreza não deve ser atribuído ao confinamento, mas à gestão que os governos capitalistas fazem da economia em crise, ao não impedir despedimentos e garantir apoios dignos ao conjunto da população. Em Portugal, há dinheiro para o Novo Banco, mas não para os milhares que perderam o emprego ou tiveram que encerrar as suas empresas; paga-se 55 milhões de euros para que o empresário que ajudou a afundar a TAP deixe a empresa, depois de tê-la arrematado, no processo de privatização em 2015, a preço de saldo, por 10 milhões de euros; ou prescinde-se de quase 7 mil milhões de euros, previstos no orçamento de 2020, que poderiam ter sido usados em apoios para os mais necessitados.
Gripezinha mortal
A doença classificada por Bolsonaro como “gripezinha” já causou mais de 2,5 milhões de mortos no mundo. Mesmo assim, há quem insista em comparar a covid-19 à gripe sazonal. Será possível? Não é o que mostram os estudos publicados em revistas científicas. Um deles, divulgado na revista Lancet, compara a evolução clínica de pacientes com covid-19 com a de outros atingidos pela gripe sazonal internados em hospitais franceses. Os resultados foram reveladores: enquanto 16,3% dos doentes covid necessitaram de cuidados intensivos, apenas 10,8% exigiram tais cuidados no caso da influenza; a taxa de mortalidade por covid também foi superior, 16,9% frente a 5,8%; a permanência média em unidades de cuidados intensivos (UCI) foi, no caso de covid, de 15 dias, enquanto para os pacientes de gripe foi de 8 dias.
Em entrevista publicada no site da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, dos Estados Unidos, o virologista e professor de Microbiologia e Imunologia Molecular Andrew Pekosz responde assim aos que insistem nessa comparação: “Desde dezembro de 2019, a covid-19 matou mais pessoas nos EUA do que a gripe nos últimos cinco anos. A gripe é um fardo significativo para a população, mas a covid-19 teve um efeito muito maior”.
Esse efeito, prossegue o cientista, seria fruto da pouca imunidade preexistente ao SARS-CoV-2 e à inexistência de bons tratamento ou vacinas [à data da entrevista, 20 de outubro de 2020, ainda não havia vacinas aprovadas], mas também ao facto de causar doença mais grave do que a gripe em geral. “Se tantas pessoas contraem apenas doenças “leves” com covid-19, como pode ser mais perigosa do que a gripe?”, questionou o jornalista. A resposta foi simples e clara: “Um grande número de pacientes com covid-19 não apresenta sintoma algum ou muito leves, mas esses indivíduos ainda podem transmitir o vírus a outras pessoas, alguns dos quais podem ter um curso da doença muito mais sério”.
A idade covid
A imensa maioria dos doentes que desenvolvem casos graves de covid-19 são pessoas idosas e ou com doenças pré-existentes. Mas essa informação requer alguma reflexão. Em primeiro lugar, o facto de os idosos serem maioria não significa que não haja pacientes mais jovens nos cuidados intensivos. Dados da Direção Geral de Saúde (DGS) davam conta que, em finais de janeiro, a percentagem de internados nos cuidados intensivos em Portugal com idades entre os 30 e os 39 anos era de 2,77%; entre os 40 e os 49 anos, de 9,1%; e cerca de um quinto do total eram pessoas entre os 50 e os 59 anos. Portanto, a quantidade de pessoas mais jovens em UCI era bem maior do que se costuma supor. Alguns médicos têm observado que os doentes agora são cada vez mais jovens e com sintomas preocupantes.
A segunda reflexão sugerida pela idade dos doentes covid prende-se ao respeito pela vida e à necessidade de se combater o ageísmo, ou preconceito por idade, tão presente quando se trata de debater os efeitos da covid. O que fica subjacente nesse debate é que o potencial de letalidade da doença não seria tão grave porque atingiria principalmente pessoas idosas. Este raciocínio é bastante operacional para o capitalismo, para o qual a vida só tem sentido se inserida no sistema produtivo. Nesse caso, os mais velhos já não servem e podem ser descartados.
O exemplo da Suécia
Para terminar este artigo, que já se faz longo, é preciso mencionar um outro argumento bastante utilizado pelos que discordam do confinamento e das máscaras: o exemplo da Suécia. Apontado como um caso de sucesso, a realidade vem demonstrando justamente o contrário. Em comparação com os demais países nórdicos, a Suécia é um caso de fracasso. Os mais de 600 mil casos de infeção e 12.798 mortes registados na Suécia do início da pandemia até o dia 25 de fevereiro significam que mais de 6% da população foi infetada e, desse total, 1,9 % morreram. Na Noruega, apenas 1,29% da população foi infetada e, desse total, 0,88% morreram; na Dinamarca, 3,6% foram infetados e 1,1% morreram. Dos três países, a Suécia é a que possui o maior Produto Interno Bruto (PIB) e todos estão bem colocados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): a Noruega em primeiro lugar, a Suécia em 7º e a Dinamarca em 10º.
Qual a diferença entre os três? Enquanto Noruega e Dinamarca recorreram a medidas de proteção da comunidade, a Suécia, mesmo sem admiti-lo, teve como estratégia a imunidade de grupo, evitando aplicar as recomendações da Organização Mundial de Saúde, como testes e rastreamento de contatos. O mau resultado está à vista, com o país à beira de uma terceira vaga e Estocolmo a registar um aumento de 27% dos casos na última semana. Há poucos dias, o governo demonstrou estar a mudar de atitude. Passou a recomendar o uso de máscaras nos transportes públicos e espaços fechados.
O combate à pandemia com garantia de renda e emprego deve ser uma exigência de todos os trabalhadores e das populações pobres, para salvar vidas, proteger a saúde e não perder direitos. A saída para a classe trabalhadora não é não confinar (deixando que apenas a burguesia se possa proteger a si e aos seus), mas exigir um confinamento que sirva os trabalhadores, e não um meio confinamento para manter os lucros dos patrões!