Um plano nacional que se preze deve refletir a desigualdade concreta. Porém, o que vemos é que este continua a incorporar o velho discurso do racismo individual, que sujeita as pessoas a “comportamentos e atitudes discriminatórias ou xenófobas”, ficando por entender o que são as motivações “históricas e sociais” por detrás do racismo e o papel do Estado no mesmo.
Como poderemos identificar se não podemos e não queremos explicá-lo à luz da realidade material da sociedade? Sabendo do caráter estrutural do racismo para o modo de produção capitalista, o quanto uma divisão racial do trabalho permite rebaixar o nível salarial, o quanto a discriminação velada de grupos permite construir uma paz social que coloca a classe trabalhadora branca (maioritária) em unidade com os seus exploradores, e os trabalhadores racializados KO para se reivindicarem enquanto classe.
Sendo assim, devemos desprezar estas iniciativas do Estado? Que capacidade real têm elas de melhorar a nossa vida?
Nos últimos anos, as iniciativas institucionais sobre o racismo e a discriminação têm sido colocadas no âmbito do Alto Comissariado para as Migrações, que acumula, assim, competências em duas esferas confluentes, mas diferentes. Será que cabe ao Alto Comissariado para as Migrações refletir sobre situações de comunidades imigrantes, ao mesmo tempo que procura refletir sobre a desigualdade que a comunidade cigana sofre há mais 5 de séculos em Portugal? O plano não deveria ser inequívoco na mensagem de que as comunidades negras e imigrantes são tratadas como imigrantes no seu próprio país, e que essa exclusão constitui um fenómeno distinto da problemática da integração de imigrantes no país? O ACM vai continuar com essas competências?
Mais uma vez, na área da Educação, sobre a longa batalha das educadoras e ativistas negras e ciganas pela revisão crítica do conceito dos Descobrimentos e o seu cruzamento com a Escravatura, deparamo-nos com o seguinte: “Diversificar o ensino e os currículos, designadamente, através da inclusão de conteúdos, imagens e percursos sobre a diversidade e presença histórica dos grupos discriminados, e processos de discriminação e racismo, nos currículos e manuais escolares.” (pp. 9-10)”
O Governo tem a responsabilidade de fazer mais, não se trata de pontuais “processos de discriminação e racismo” na História, como vemos pelo enfrentamento com os setores que cavalgam explicitamente o racismo. Para os derrotar, é preciso contar o que foi e qual o alcance da escravatura transatlântica, do genocídio indígena e da repartição de África, que preparam o mundo desigual que temos hoje. É preciso esvaziar os mitos por detrás das crenças de superioridade alicerçada em atrocidades.
Por outro lado, o Estado volta a demonstrar falta de coragem quando coloca as quotas sociais apenas para alunos vindos de Zonas de Intervenção Prioritária. Pois se é verdade que são necessárias as quotas sociais em zonas mais castigadas pela exploração e exclusão, porém o que sabemos pelos poucos estudos que existem, é que mesmo em contexto de situação social semelhante, as famílias afrodescendentes ganham menos, são ainda mais precárias, e os seus filhos têm maior taxa de retenção. Portanto, defendemos claramente uma combinação entre os dois tipos de quota, que permita uma oportunidade mais equitativa.
No Trabalho, para além do reforço das instituições que regulam as relações laborais, cuja capacidade de atenuar uma divisão racial e racista do trabalho tem sido escassa, o Plano é omisso em matéria de quotas raciais para a Função Pública. Por todo o plano se repete o conceito de diversidade, mas as aplicações mais contundentes e que mostrariam um compromisso real com a igualdade, não estão contempladas. Não se trava a lógica da precariedade no direito à habitação com ações de formação enquanto a especulação continuar.
O Plano ressalta também uma questão central: a continuidade de um quadro legal que mantém a lógica de impunidade racista. Racismo não é contra ordenação, é crime! O Estado, mais uma vez, irá manter essa lógica. Tambémnão propõe nada além de legislação para a implementação da câmara corporal que poderá gravar a ação dos agentes de polícia, embora não proponha como irá efetivamente, e não simbolicamente, lidar com o Racismo que envenena a atuação das forças de segurança.
Mesmo que a sua existência já demonstre a força da reivindicação, não será através de um plano que é brando, declarativo, e não garante medidas concretas e reais, como a desburocratização do processo de acesso à nacionalidade, a regularização de todos os imigrantes, a nacionalidade para todos os filhos de imigrantes nascidos em solo português, mão pesada sobre a brutalidade policial e o racismo enquanto crime de ódio, ou políticas-barreira, por um lado, e quotas, por outro, que combatam a segregação em todos os seus aspectos. As mudanças reais não passam pelo investimento de mais fundos públicos em campanhas mediáticas, ações de sensibilização e um aparato de monitorização. O caminho do movimento não é o de ser comprado ou de fazer parte do aparato do Estado para legitimar a sua ordem racista, mas sim o de lutar, exigir e arrancar dele medidas e vitórias concretas.