A grande maioria dos visitantes é de admiradores de Tintin, personagem de Banda Desenhada (BD) criada por Hergé, em 1929, que desde então conquistou adeptos de diferentes gerações. Entre os mais jovens, em geral, o interesse pelas aventuras de Tintin nasceu a partir de 1980 com reedições dos seus livros e com animações transmitidas na televisão portuguesa. E, mais recentemente, através de uma “longa” de animação dirigida por Steven Spielberg, em 2011, disponível na Netflix, cuja sequência está a ser ansiosamente esperada pelos “tintinófilos”.
De acordo com a comunicação oficial da Fundação Calouste Gulbenkian, Hergé “dá origem a personagens emblemáticas que encarnam os grandes valores da sociedade”. O que não é visível ao grande público visitante da exposição da Gulbenkian é que a “representação do real” difundida nas aventuras de Tintin, sobretudo em banda desenhada, foi construída com tintas fortemente carregadas pelo racismo e pelo colonialismo, de forma mais evidente na sua primeira fase.
Ou seja, as narrativas heroicas de Tintin trazem embutidas nas suas aventuras os “grandes valores” de superioridade racial branca e da cultura europeia – como o mito do “fardo civilizacional do homem branco” – que as burguesias dos países mais ricos utilizavam à época para “normalizar” e justificar a exploração dos povos de África, no Oriente e na América Latina. À época, uma das expressões mais fortes disso na emergência da cultura de massas (ou indústria cultural) foi Tintin no Congo, livro que na sua versão original em francês (Tintin au Congo) completou 90 anos em 2021.
Nesta obra, a segunda de uma série de 23 aventuras de Tintin publicadas em forma de livro em dezenas de idiomas, o jovem belga salva o Congo de se transformar numa colónia de Al Capone. Os congoleses são bizarramente retratados como pessoas de praticamente um só rosto, animalizados, ingénuos, infantilizados, preguiçosos, extremamente ignorantes e quase completamente dependentes e submissos aos brancos. Já os europeus são apresentados com feições e expressões faciais bem definidas, com os “traços claros” que são características de Hergé. Quanto à questão geopolítica, não há qualquer subtileza no discurso do autor. Num dos quadros da banda desenhada, por exemplo, Tintin dá uma lição de geografia para crianças numa escola de vila dirigida por um padre missionário branco europeu.
Neste momento, o herói começa a aula da seguinte forma: “Meus queridos amigos, hoje vou falar sobre o vosso país, a Bélgica”. Tudo a ver com a política colonialista que fora imposta de forma extremamente cruel ao povo do Congo. Ao final da estória, depois de “salvar” o Congo de uma outra colonização, restava ao povo prestar reverência, de joelhos, à imagem de Tintin e à do seu cãozinho Milou, enquanto outra pessoa afirmava: “Dizem que todos os pequenos brancos na Europa são como Tintin”.
Esta mesma obra, em 1939, acabava por colaborar com os ideais do Estado Novo e o colonialismo português, ao ser publicado por aqui sob o título “Tim-Tim em Angola”, em O papagaio, uma revista para miúdos. A primeira das aventuras a serem traduzidas em português, no entanto, foi Tim-tim na América, também n’O Papagaio, em 1936. Era também a primeira vez que Tintin ganhava edição em idioma diferente do original.
Além de racista e colonialista, BD do Tintin também foi anticomunista
A exposição da Fundação Calouste Gulbenkian foi organizada em colaboração com o Museu Hergé de Louvain-la-Neuve. Consequentemente, mais do que possibilitar que os fãs de Tintin conheçam outras facetas de Hergé (que também trabalhou com publicidade, desenho de moda e artes plásticas), a exposição tem o objetivo de firmar a imagem do artista como um génio, cujo talento ganhou projeção internacional a partir da banda desenhada que imortalizou Tintin, originalmente publicada num jornal católico ultraconservador belga. Periódico este que, por acaso, era dirigido por um padre admirador do fascista Benedito Mussolini. Especialmente por isso, a estreia de Tintin, em 1929, foi um livro especialmente anticomunista: Tintin no país dos sovietes (Tintin au pays des Soviets). Nesta obra, Hergé deturpa todo o complexo contexto político na então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ao omitir as profundas e irreconciliáveis diferenças entre Estaline e Trotsky, colocando estas duas figuras do mesmo lado.
Naquele momento, o dirigente revolucionário Leon Trotsky não só havia sido expulso do Partido Comunista Russo, como também já sofria no exílio imposto pelo estalinismo, política de perseguição e expurgos que resultaram no enfraquecimento e esvaziamento dos sovietes enquanto espaço legítimo de democracia operária e, por conseguinte, no que viria a ser o irreversível processo de burocratização que resultou na restauração capitalista da URSS e do leste europeu a partir da década de 1980.
Numa das imagens da banda desenhada Tintin no país dos sovietes aparece uma caldeira em que se encontra, a cozinhar, um pequeno esqueleto humano, o que ajudava a difundir a conhecida fake news de que “comunistas comem crianças”. Noutro momento, Tintin retratou como farsa o avançado processo de industrialização da URSS, assim como algumas das conquistas importantes da planificação económica (acesso a saúde, educação e emprego pleno).
Tais conquistas da revolução socialista de 1917 foram inegáveis e perduraram por décadas. Mas não interessava a Hergé – nem à burguesia internacional – mostrar o desenvolvimento técnico e de melhorias condições de vida e culturais na União Soviética, quando a crise de 1929 levava milhões à fome em grandes potências capitalistas. Também não era interessante dizer que o processo de burocratização e perda de direitos democráticos impostos por Stalin e combatidos por Trotsky (e o grupo que deu a luta política interna no partido comunista sob o nome “oposição de esquerda”).
Era simplesmente mais fácil e necessário combater o avanço de uma ideologia que ameaçasse o status quo burguês, e isso não era feito somente na banda desenhada de Tintin, mas de dezenas e dezenas de publicações, de diversos géneros, nos países capitalistas. Era necessário atribuir a Trotsky até mesmo o que era obra e característica de Estaline. Um bom exemplo é o episódio em que o herói Tintin escapa de uma emboscada promovida por um dos agentes da polícia política do regime estalinista, que afirma: “Esta maldita queda fez-me perder o seu rasto, por Trostky! Como é que esta casca de banana se veio perder debaixo do meu pé???”. Noutra tira, um personagem “bolchevique” vangloria-se de guardar, nos seus porões, “as riquezas que haviam sido roubadas do povo por Estaline, Lenine e Trotsky”.
Para público bastante restrito, ciclo evidenciou a ideologia reacionária de Hergé
Certamente antecipando possíveis críticas, sobretudo num momento em que em diversas partes do mundo se dá uma forte denúncia do racismo na sequência das mobilizações do movimento Black lives matter -, a Fundação Calouste Gulbenkian promoveu, em paralelo com a exposição Hergé, um ciclo de conferências em que a produção do artista fosse problematizada, o que trouxe à tona o colonialismo e o racismo, sobretudo nas primeiras aventuras de Tintin. Também se abordou como foi útil à ditadura do Estado Novo português a versão de Tim-tim em Angola.
Os debates, no entanto, ficaram restritos a um ínfimo número de participantes. Desta forma, sem que houvesse avisos de advertência aos visitantes sobre conteúdos colonialistas e racistas do artista, o que se proporcionou foi um culto acrítico a Hergé. Não pregamos censura à exposição da Gulbenkian, mas é muito estranho que não haja nas salas de exposição referentes ao “universo Tintin” qualquer referência às polémicas existentes. Noutros países, a obra Tintin no Congo foi alvo de grandes denúncias. Em 2007, por exemplo, a Comissão pela Igualdade Racial (Commission for Racial Equality), órgão britânico, questionou o facto de Tintin no Congo ainda estar nas prateleiras. No mesmo ano, a obra foi levada a tribunal na Bélgica, por um estudante congolês, ao considerar a obra um insulto para o seu povo. A justiça belga acabou por inocentar Tintin no Congo de racismo em 2012. Talvez se o julgamento fosse hoje, em virtude das pressões antirracistas, o resultado fosse outro.
Tal imagem idealizada de Hergé e da sua obra só foram questionadas nas conferências, com pequena participação numérica de pessoas. Uma das conferências promovidas teve como tema “Hergé e o mundo contemporâneo”, tendo a participação de Miguel Bandeira Jerónimo, Professor Associado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que pesquisa sobre história do imperialismo e do colonialismo. A ele coube, por exemplo, combater o discurso que minimiza a narrativa racista e colonialista de Hergé, usado por quem costuma justificar e isentar a narrativa do autor como fruto do “homem em seu tempo”. Há quem repita em defesa de Hergé que o artista teria feito autocrítica e reconhecimento de que as suas primeiras obras foram influenciadas pela ideologia colonial.
De acordo com Miguel Bandeira Jerónimo, no entanto, evidências históricas mostram que Hergé poderia ter agido de forma diferente no contexto em que viveu, já que quando Tintin surge ocorria ao mesmo tempo o crescimento de publicações e de eventos culturais e políticos que faziam a crítica ao colonialismo europeu. Já a investigadora Maria Inácia Rezola, investigadora integrada do Instituto de História Contemporânea (IHC-FCSH/UNL), apesar de ser menos crítica que o colega de conferência, não deixou de levantar ainda a necessidade de se falar sobre Tintin também sob a perspectiva de género, um tema importante e já abordado no livro Invisibilidade do género feminino em Tintin: A conspiração do silêncio, de Ana Bravo. Nele fica demonstrada a misoginia presente nas obras de Hergé, nas quais apenas 18 das 325 personagens são mulheres, e a grande maioria em papéis irrelevantes.