Para eles a culpa é da ‘guerra na Ucrânia’ – e portanto, da heroica luta do povo ucraniano contra o despotismo invasor de Putin. Para além de tentarem esconder as antigas e atuais razões da miséria e fome, visam procurar no descontentamento geral dos povos uma justificativa para defenderem a “paz e negociação” rápidas entre a Ucrânia e Putin, amputando o povo agredido de uma parte do seu território.
Mas aquela “qualquer coisa de verdade” que, como diz Aleixo, vem misturada com a mentira, é também expressa por uma parte da esquerda e movimento sindical que se recusa a ver naquela guerra a resistência heroica do povo ucraniano ao invasor e o seu direito inalienável a defender-se. Portanto, também esta esquerda culpa centralmente a guerra pelas más condições de vida dos trabalhadores. Mas será realmente esta a razão da difícil situação económica atual?
Economia dos EUA e mundial à beira da recessão
Como estava a economia mundial antes da invasão russa? Alejandro Iturbe da LIT-QI alertava, em outubro de 2021, que a recuperação económica ocorrida no pós-pandemia era anémica, sublinhando ainda que “Em agosto passado [2021], a economia dos EUA criou muito menos empregos que o esperado”.
Também o crescimento da inflação já vinha de trás, relacionado com a pandemia e a quebra das cadeias de produção e distribuição, que levavam a uma carência de matérias-primas e produtos e à alta dos preços. Além disso, as grandes empresas aproveitaram a retoma pós-pandemia para subir os preços e fazer lucros escandalosos, através da maior exploração dos seus trabalhadores e do aumento do custo de vida.
Já em julho deste ano, a Blomberg, influente agência norte-americana de notícias e análises financeiras, previa: “O Federal Reserve [FED] provavelmente terá que infligir muito mais dor à economia para controlar a inflação”. O “remédio” que os governos europeus estão a usar para controlar a “epidemia” de inflação na Europa é o mesmo que o FED está a utilizar: aumentar os juros para o valor mais alto desde a crise de 2008 (3,25%), mas que deverão continuar a aumentar. Para aquela agência financeira, os EUA deverão já estar a entrar em recessão e há “uma probabilidade de 100% de recessão nos próximos 24 meses”. Fica assim claro que os governos capitalistas preferem a recessão à redução dos lucros dos grandes bancos e grandes empresas.
A UE entre os EUA e a guerra
Apesar disto, a economia dos EUA tem vantagens face à economia europeia. Os governos da UE têm que enfrentar, junto às suas fronteiras, a guerra de Putin, a onda alta da inflação (que na zona do Euro deverá ter atingido 10% em setembro), a sua dependência energética perante os fornecedores russos ou o realinhamento para novos fornecedores que atinge profundamente a Alemanha, e a luta reivindicativa salarial já aberta de largos sectores da classe trabalhadora. Além disso, a desvalorização do euro perante o dólar (que já atingiu a cotação mais baixa dos últimos 20 anos), encarece a compra de produtos pagos em dólares no mercado mundial, nomeadamente o gás e petróleo, acelerando o défice comercial na EUA. A burguesia europeia tem, assim, mais uma ‘frente de guerra’ com os EUA.
Alemanha, o “motor da… crise”?
A Alemanha já foi considerada o ‘motor da Europa’ com a sua indústria e quase 30% (4,3 biliões de euros) do PIB da zona euro (2021). A burguesia alemã atraiu, assim, para a sua órbita as restantes burguesias e elites europeias, entre as quais a portuguesa.
Mas agora, como alertava o economista marxista Michael Roberts, a 24 julho “A produção industrial da Alemanha vem se contraindo há mais de três meses […] Muitos fabricantes alemães estão a alertar que terão que encerrar completamente a produção se os fornecimentos de energia secarem”. Entretanto a inflação alemã atingiu, em setembro, o nível histórico de 10%, sem paralelo nos últimos 70 anos. Agora, “motor da Europa” impulsiona… a inflação, a subida das taxas de juro do BCE nos bancos do euro … e tem como perspetiva também a recessão.
Reino Unido: mais decadência, pobreza, raiva e… crise política
Mas talvez o Reino Unido seja o país onde é mais visível a decadência imperialista. As consequências – pobreza e desigualdade social em crescimento! – do descalabro que há décadas acompanha a ‘financeirização’ da economia britânica tornam-se impressionantes perante a atual crise mundial. O Banco de Inglaterra prevê uma inflação de 13,3% para este mês e o Citibank 18,6% para 2023.
Mas as consequências para as famílias e a classe trabalhadora serão catastróficas no futuro próximo. Michael Roberts prevê que “mais de 40% das famílias não poderão aquecer os seus lares” quando o inverno chegar devido aos altos preços que as empresas de energia cobram e que o país importa do mercado mundial.
Perante a raiva popular em crescimento – de que as greves em setores como ferroviários, correios e telecomunicações são apenas um exemplo… – não admira que a nova primeira-ministra, Elizabeth Truss, tenha que recuar na promessa de baixar (!) os impostos da elite.
Lucros escandalosos
Enquanto para os trabalhadores se começa a falar de crise, a nível das multinacionais da energia os lucros no terceiro trimestre deste ano foram astronómicos: Shell, 11,5 mil milhões de dólares; ExxonMobil, 17,6 mil milhões; Chevron, 11,6 mil milhões; Total, 9,8 mil milhões… (Michael Roberts, 5SET2022)
Um exemplo mais de uma grande empresa multinacional, representativa da burguesia e indústria alemãs: no relatório de gestão do Grupo Volkswagen sobre 2021 podemos ler: “apesar do impacto contínuo da pandemia de COVID-19 e em particular da disponibilidade de veículos como resultado da escassez de semicondutores, o Grupo Volkswagen gerou receita de vendas de €250 biliões no ano fiscal de 2021, 12,3% mais que no ano anterior”.
Alternativa: Construir uma organização revolucionária para lutar contra a catástrofe
O roubo salarial por via da inflação não é uma fatalidade nem tem origem fora da economia concreta que nos é imposta pela burguesia e os seus governos. A disputa pelo lucro gerado na exploração da classe trabalhadora por parte de cada burguês ou capitalista determina as decisões daqueles: não são os trabalhadores os responsáveis pela catástrofe geral que destrói o seu nível de vida. Por isso, têm todo o direito a exigir salários e condições de vida dignos, a lutar com toda a capacidade e organização de classe.
A resistência do povo e classe trabalhadora ucranianas contra o invasor não pode deixar de ser uma fonte de inspiração e merecer a solidariedade internacional e de classe.
A luta contra a austeridade dos governos burgueses – “socialistas”, liberais ou de extrema-direita -, contra a inflação e por salários e pensões dignos, pela fixação dos preços, pela nacionalização sob o seu controlo dos sectores decisivos da economia, por uma revolução na economia que a liberte do colete de forças do lucro, pela construção de uma alternativa dos “de baixo” que vise governar cada país e o mundo, apenas pode ser levada até ao fim se for apoiada numa organização revolucionária anticapitalista e socialista, internacionalista. O Em Luta e a Liga Internacional dos Trabalhadores querem construir essa alavanca!
Edu Dário
Texto originalmente publicado no Em Luta, N.º 06 (outubro, 2022), pp. 4 e 5