Em março, olhávamos aterrorizados para o que se estava a passar em Itália e em Espanha. Hoje há filas de ambulâncias a acumularem-se à porta do principal hospital do país e falhas no abastecimento de oxigénio do Hospital Amadora-Sintra. Fala-se inclusive que os médicos já são obrigados a escolher quem é tratado e quem fica em segundo plano, num cenário de barbárie a que não pensámos chegar.
Uma primeira explicação para estes extremos é que, em março, a pandemia chegou a Portugal com atraso relativamente ao que se passava em toda a Europa. Quando, em fevereiro/março, o governo espanhol, por exemplo, resistia a fechar escolas e decretar confinamento geral perante o início da pandemia (o que teve consequências dramáticas), Portugal decretou logo confinamento geral, pois tal já era inevitável perante uma situação descontrolada na Europa. Esta antecipação foi a principal razão para se ter conseguido controlar a situação em março/abril.
Mas nesta segunda e terceira vagas, Portugal já não tinha esta vantagem e não tirou a lição de que é mais fácil antecipar do que controlar a pandemia quando esta já está espalhada pela comunidade. A isso, juntam-se as desvantagens estruturais de Portugal de que ninguém quer falar, e que agora cobram o seu preço.
Os lucros capitalistas acima da saúde
A responsabilidade da atual situação é a política do governo de António Costa e do Presidente Marcelo, que não armou o SNS para responder à atual situação. Apesar das grandes qualidades do nosso SNS e de o Governo muito ter propagandeado que se estava a aumentar a sua capacidade de resposta, a verdade é que partíamos de muito atrás. Foi uma política de falta de planeamento por parte do Governo (basta ver que todos os anos, janeiro/fevereiro já é a pior época nos hospitais devido à gripe) e de organização e gestão conjunta dos recursos existentes (a CUF envia indiscriminadamente doentes para o Hospital Santa Maria, por exemplo).
Acima de tudo, há um problema da política do Governo Costa. Todos os governos europeus, o de Costa inclusive, disseram que era preciso voltar rapidamente à normalidade e que a situação estava controlada, mesmo quando desde meados de outubro se viu que não estava. Costa afirmou várias vezes que, como em março/abril a economia caiu cerca de 16%, não era possível voltar a fechá-la, mesmo quando o número de infeções começou a acelerar brutalmente no outono. A economia era o seu critério e foi por isso que, apenas quando o número de mortos passou à centena, decidiu fechar restaurantes e comércio e, finalmente, as escolas. O preço de ter posto os lucros capitalistas à frente da saúde está à vista.
Mas há outras expressões desta gestão capitalista da crise sanitária, que levou a uma política governamental de constantes ziguezagues, sem tocar nas questões centrais para combater o contágio. Por exemplo, nunca se deu condições para fazer uma verdadeira quarentena geral, porque não se proibiu os despedimentos, não se garantiu rendimentos a trabalhadores e micro e pequenos empresários, não se garantiu casa e condições de habitação para que as pessoas tivessem onde fazer quarentena. Ao mesmo tempo, deu-se dinheiro às grandes empresas com os lay-off e afins, quando estas têm caixa para garantir paragens e pagar aos seus trabalhadores. O governo nunca controlou a sério o teletrabalho, nem se as empresas cumpriam as medidas de proteção e segurança para poderem laborar. Nunca se triplicou a oferta de transportes públicos, nem se garantiu testagem massiva para antecipar a expansão do vírus. Nunca se enfrentou a situação nos lares, que para funcionarem em condições têm que ser do Estado e ter uma relação de apoio com o SNS. Nunca se garantiu verdadeiras condições para as escolas funcionarem, como sejam a redução do número de alunos por turma, o aumento de professores e funcionários e a vacinação prioritária dos mesmos.
O que esteve sempre como primeiro critério foi a preocupação em garantir a menor perda possível nos lucros capitalistas, mantendo tudo a funcionar, mesmo que não houvesse condições de saúde para tal. Simultaneamente, abriu-se o mínimo possível os cordões à bolsa do Estado (pois as regras do défice e de não intervenção estatal na economia na UE continuam), embora isso fosse necessário para dar uma resposta à altura da pandemia, investindo na saúde, em profissionais, em transportes, em inspeção, etc.. Finalmente, estamos desde o dia 6 de novembro em estado de emergência, o que, em si, é um ataque aos direitos democráticos e de organização dos trabalhadores, com particular repressão sobre as populações pobres das periferias. O que faltou em política pública de combate à pandemia, o Governo e o presidente compensaram com culpabilização individual e repressão dos mais pobres.
Uma pandemia num país periférico e brutalmente desigual
Por outro lado, não é possível compreender a gravidade da situação a que chegámos em Portugal hoje, sem combinar uma análise das políticas inconsequentes e capitalistas de Costa-Marcelo (atrás referidas), com os problemas estruturais do país, que se agravam há vários anos e que perante a atual situação de crise mostram ainda mais a sua dramaticidade.
A nossa principal garantia frente à pandemia é o Serviço Nacional de Saúde, mas este está há vários anos nas ruas da amargura devido a cortes constantes na saúde, seja pelo Governo Passos/Portas, seja pelo Governo Costa (o da Geringonça e o atual). Se acrescentarmos os congelamentos e cortes salariais aos profissionais de saúde, que levam cada vez mais trabalhadores a irem para o privado ou emigrarem, temos um panorama real das dificuldades que o SNS tem para enfrentar a atual situação. Expressão dessa dificuldade é o facto de, quando começou a pandemia, Portugal ser o país da UE com menor número de camas em Cuidados Intensivos por 100 mil habitantes. Os profissionais de saúde têm feito das tripas coração e mostrado que, apesar de maltratados pelos governos, defendem a saúde pública e a vida das pessoas acima de tudo. Infelizmente, batalham contra condições que os impedem de fazer mais.
Mas não é só na saúde que estamos em desvantagem perante uma nova onda avassaladora da pandemia. Temos dos salários mínimos mais baixos (só acima da Europa de Leste), níveis brutais de insegurança alimentar, quase 25% de pessoas no limiar da pobreza e 22% que afirmam não ter dinheiro para aquecer a casa (frente a 9% na UE). O desemprego cresce a olhos vistos, o que só agrava a miséria anteriormente existente. Tudo isto mostra uma população debilitada socialmente, que tem menos saúde para enfrentar um vírus novo e poderoso.
A nossa pertença à UE é uma agravante em tudo isto, exigindo cortes orçamentais constantes para cumprir as regras do défice, enquanto impede que o Estado controle os setores chave da economia (como a EDP, por exemplo) de forma a que se pudessem prestar serviços básicos essenciais à população. A intervenção da Troika (FMI+Comissão Europeia) foi essencial para este agravar das condições de vida da população e para a destruição dos serviços públicos. Agora, perante a pandemia, a UE volta a obrigar os países a endividarem-se, o que trará atreladas novas medidas de austeridade para cobrar o dinheiro emprestado. Ao mesmo tempo, mostrou-se incapaz da solidariedade essencial entre países no apoio médico e de saúde, por exemplo a Itália e a Espanha, e o seu favorecimento às farmacêuticas é o travão que continua a impedir que na UE e em Portugal haja patente pública, a única forma de garantir vacinação gratuita para todos de forma rápida, ao contrário do que tem acontecido.
Só é possível enfrentar a pandemia, combatendo as políticas capitalistas de Costa-Marcelo e da UE
A fragilidade social e económica do país exigia que o Governo tivesse que ter antecipado o crescimento da pandemia e tido política para evitar a atual situação desastrosa. Pelo contrário, o Governo fez propaganda de que estava tudo bem e controlado, que as vacinas iam resolver o problema. Priorizou garantir a economia a funcionar, em vez de investir na saúde e proteger as vidas da população para precaver um descontrole do contágio.
Por isso, é preciso enfrentar este sistema capitalista e as suas regras para poder combater a sério a pandemia, deixando de hipotecar a saúde e vida de milhões em nome dos lucros milionários de uma centena de privilegiados. É preciso sair a lutar para garantir uma outra lógica frente à pandemia e para impedir que esta signifique um novo nível de exploração nos locais de trabalho. É preciso uma ampla união para lutar pelos nossos direitos e, ao mesmo tempo, contruir uma alternativa revolucionária dos trabalhadores, porque só com um nova revolução poderemos garantir uma sociedade organizada para o bem coletivo, e não para o lucro privado.