Trump: triste, solitário e final? [1]
No passado dia 6 de janeiro, entre 8.000 e 30.000 pessoas (a estimativa varia segundo os meios de comunicação social), vindas de diferentes partes do país, manifestaram-se contra a ratificação por parte do Congresso dos resultados eleitorais, que colocavam Joe Biden como vencedor. Foram instigados pela campanha de Trump de que ele tinha sido o vencedor e que “o tinham roubado”.
Dessa multidão saiu um setor de cerca de 1.000 que entrou no prédio do Capitólio à força, ocupou-o por várias horas, e obrigou à suspensão da sessão. As imagens percorreram o país e o mundo, em especial a de Jake Angeli (o estranho personagem com o corpo pintado e um chapéu com chifres) que se sentou na cadeira do presidente do Senado. “Alguns eram extremistas que usavam a multidão como cobertura…”, informa-nos uma revista de Boston [2].
Uma parte da imprensa pró-democrata dos EUA, e outros meios de comunicação no mundo, qualificaram o ocorrido como uma “tentativa fracassada de golpe de Estado”. Acreditamos que esta definição está equivocada. É verdade que alguns grupos e indivíduos estavam dispostos a sequestrar e a matar, mas não tinham como objetivo tomar o poder. Por isso, acreditamos que a palavra mais correta a usar seja “motim”. De certa forma, foi o que as organizações guerrilheiras de esquerda dos anos 70 chamavam de uma “ação de propaganda armada”, numa estratégia que, sim, é golpista. Por isso, não devemos subestimar o facto de esta representar a primeira ação coordenada e centralizada de um grupo heterogéneo de organizações de extrema direita, que veremos a seguir com mais detalhe.
Mas o grosso dos participantes da manifestação era composto por “americanos normais”, segundo palavras do artigo do The Atlantic já citado: setores da classe média, incluindo proprietários e gerentes de pequenas empresas. Os trabalhadores não podem dar-se ao luxo de perderem dias de trabalho para participarem de uma manifestação noutra cidade e, menos ainda, pagar uma passagem de avião para isso.
Os grupos de extrema-direita
A análise dos grupos que realizaram a ocupação do Capitólio exige que sejamos mais precisos. Vejamos as organizações que foram identificadas.
Os Proud Boys (Garotos Orgulhosos) é uma organização política neofascista fundada em 2016. Só admitem homens como membros e estiveram envolvidos em vários atos violentos no país e no Canadá.
Os Oath Keepers (Guardiões do Juramento) é uma organização fundada em 2009 sob a forma de milícia clandestina e integrada por ex-membros e membros atuais das forças armadas e por polícias.
Os Three Percenters (Três por Cento) é um movimento de milícias e grupos paramilitares fundado em 2008. Pregam uma espécie de “anarquismo de extrema-direita”: defendem o direito de posse de armas (existente na legislação do país, mas que se procura restringir) e formam pequenas “repúblicas” nas quais negam o direito de intervenção do Governo.
O Traditionalist Worker Party (Partido Operário Tradicionalista) foi uma organização neonazi ativa entre 2013 e 2018. Embora formalmente dissolvido, os seus membros ainda continuam a atuar em grupos mais pequenos.
Os Neoconfederados são aqueles que reivindicam a Confederação, um núcleo de Estados do sul do país que em 1861 se separaram dos EUA pela sua oposição à abolição da escravidão, dando início à Guerra de Secessão, na qual foram derrotados em 1865. Diversos grupos reivindicam os seus “ideais” racistas e conservadores contra o Norte “corrupto e libertino”.
Os QAnon é o mais extravagante destes grupos (a ele pertencia o “homem do chapéu com chifres”). Partem de uma “teoria da conspiração” segundo a qual um “governo secreto de pedófilos satanistas” quer levar a humanidade à sua degradação, e iniciaram uma guerra secreta contra eles. Trump seria o Salvador e o líder dessa guerra. Grupos adeptos desta teoria têm se expandido para outros países do mundo, por exemplo, a Alemanha [3].
Depois da mensagem de Trump clamando “pela paz”, algumas horas depois da ocupação do Capitólio, verificou-se um distanciamento da sua figura por parte dos grupos que intervieram. Os Proud Boysqualificaram-no de “ser um fracassado” e os Oath Keepers e os Three Percenters também lhe dirigiram críticas. Por sua vez, um segmento importante de seguidores de QAnon abandonaram a página do grupo com comentários como“fomos enganados”, enquanto que, ao mesmo tempo, muitas novas pessoas queriam aderir [4].
Como combater este perigo?
Embora, como vimos, se trate de grupos de origens e visões distintas, a figura de Donald Trump atuou como catalisador e começaram a ter uma ação coordenada. Acreditamos que a denominação de “extrema-direita” já não é suficiente para os definir e que devemos começar a caracterizá-los como um embrião de movimento fascista(possivelmente, o QAnon merece uma análise mais específica sobre a sua dinâmica).
Para isso, consideramos duas expressões das suas ações mais recentes. A primeira foram os ataques (inclusive armados) a algumas das rebeliões antirracistas que ocorreram em numerosas cidades após o assassinato de George Floyd. Ou seja, mostras incipientes de métodos de guerra civil contra o movimento de massas, uma das características distintivas do fascismo. A segunda foi o ataque físico às instituições da democracia burguesa e aos seus representantes, como vimos a 6 de janeiro.
Ainda são grupos muito minoritários, mas que podem crescer rapidamente, com base em setores desesperados da classe média e setores operários brancos empobrecidos e lumpenizados, à medida que a crise económica e social que o país vive se mantenha e aprofunde, sem ser resolvida pelas instituições da democracia burguesa, e que o movimento operário e as suas lutas não apresentem uma alternativa revolucionária para sair da crise.
Se a nossa caracterização destes grupos estiver correta, cabe aplicar a frase que tanto León Trotsky como o dirigente anarquista espanhol Buenaventura Durruti utilizaram: “Com o fascismo não se discute, o fascismo combate-se [destrói-se]”. Isto significa que os métodos a serem aplicados contra estas organizações são totalmente diferentes do que deve ser utilizado para ganhar as massas e a sua consciência a outras influências burguesas.
O fascismo deve ser combatido com a ação das massas. Especialmente através da autodefesa das suas organizações, greves e mobilizações contra os seus ataques. Consideramos que este direito de autodefesa também existe frente à repressão “institucional” por parte das forças policiais e de segurança.
Um elemento complementar, mas importante, é a exigência às instituições da democracia burguesa de julgamento e punição dos participantes desses ataques. Neste sentido, consideramos que a categoria jurídica utilizada tanto para o processo de impeachment de Trump como para as acusações contra os detidos a 6 de janeiro (sedição) é ambígua e muito perigosa, porque essa mesma acusação foi utilizada noutras ocasiões contra as organizações operárias e as suas lutas.
Ao mesmo tempo, frente a uma tentativa de golpe de Estado fascista que vise derrubar as instituições da democracia burguesa, defendemos estas instituições em unidade de ação com todos os que concordem com isso, inclusive setores burgueses, com os nossos métodos e estratégia.
A ação da Polícia
Os amotinados não seriam capazes de entrar no Capitólio e mantê-lo ocupado se não tivessem tido a conivência da força policial destinada a defendê-lo. O New York Times observa que: “A Polícia do Capitólio pareceu oferecer pouca resistência e prendeu somente 14 pessoas, o que tornou muito mais difícil encontrar e acusar os desordeiros, segundo um agente da lei envolvido na coordenação da resposta. Funcionários do Pentágono disseram na quinta-feira que essa força tinha recusado uma oferta de tropas adicionais da Guarda Nacional antes do assalto, e dois funcionários policiais disseram que inicialmente tinham recusado a ajuda do FBI enquanto a aglomeração descia” [5].
Nenhuma das forças policiais estava preparada para enfrentar uma multidão armada e violenta: foram superadas em número e não havia equipamentos antidistúrbios. Depois dos factos, “O chefe da Polícia da cidade, Robert Contee, disse numa conferência de imprensa que‘não havia informação da inteligência que sugerisse a existência de uma violação do Capitólio dos Estados Unidos”. Enquanto que o chefe da Polícia do Capitólio, Steven A. Sund, disse em comunicado que tinham um‘plano sólido estabelecido para enfrentar os criminosos’”[6]. Diante dessas declarações, só se pode falar ou de uma absoluta incompetência no cumprimento das suas funções ou, como é nossa opinião, de uma conivência com o motim.
Não é a primeira vez que forças policiais mostram esta atitude frente às ações destes grupos. Durante as manifestações na cidade de Kenosha (Wisconsin), depois da selvagem agressão a tiros de um polícia branco a um jovem negro, os manifestantes gravaram vídeos com os telemóveis onde se vê um jovem branco carregando uma espingarda automática de estilo militar e atirando sobre os manifestantes, matando dois deles. Foi identificado como Kyle Rittenhouse, de 17 anos, residente na cidade de Antioquia, Illinois, a 30 minutos de Kenosha. Depois apareceram entrevistas prévias nas quais, junto de outros homens brancos armados, diziam estar ali para “proteger os negócios e as propriedades”. Outros vídeos mostram polícias a passar pelo local e a conversarem amavelmente com eles. Os agentes não realizaram nenhuma ação contra Kyle depois de ele atirar, e limitaram-se a ir ao local onde estavam as vítimas. Só foi detido depois da sua identificação pela divulgação dos vídeos, e enfrenta a acusação de homicídio intencional [7].
Ou seja, não só existem quadros médios e agentes das forças policiais que integram diretamente estes grupos, como no caso dos Oath Keepers, como, de forma mais geral, são considerados uma espécie de “força auxiliar” na tarefa de reprimir o movimento de massas. Uma realidade que reforça ainda mais o que propomos: o direito de autodefesa também se aplica frente à repressão policial.
Neste contexto, é muito possível que estejam a ocorrer atritos dentro das próprias forças policiais, já que uma parte (ainda que seja minoritária) dos seus quadros médios e agentes provêm dos mesmos bairros negros, latinos e pobres que os setores que devem reprimir. É o que poderia explicar o rumo que tomou a trama da oitava temporada da reacionária série policial Chicago PD – Distrito 21, na qual um detetive negro se enfrenta com uma numerosa família de polícias brancos racistas por denunciar o assassinato de um pacífico pai de família negro [8].
A burguesia abandona Trump
Qual foi o papel de Donald Trump nestes factos? Duas coisas são evidentes. A primeira é que foi o “mentor ideológico” do clima que os gerou, com a sua agressiva campanha prévia de “impeçam o roubo” durante todo o processo de escrutínio e a recusa em reconhecer a legitimidade da sua derrota dentro do regime democrático burguês. A segunda é que, uma vez ocorrida a ocupação do Capitólio, manteve uma inação de 5 ou 6 horas, segundo foi documentado pelo Washington Post [9], quando, de acordo com a Constituição, o seu cargo de Chefe de Estado e Comandante das Forças Armadas exigia que tivesse uma ação sumária para defender o Capitólio e reprimir os que o haviam ocupado.
Toda esta campanha de ataque à democracia burguesa teve um alto custo político para Trump: os setores centrais da burguesia, a cúpula das Forças Armadas, os grandes grupos de comunicação social (não só os pró-democratas como também outros que antes o apoiavam, como a FOX) e, inclusivamente, uma parte do seu próprio partido “largaram-lhe a mão”, deixando-o cada vez mais isolado.
Por exemplo, a National Association of Manufacturers (um poderoso grupo de empresas, entre as quais se contam Pfizer, Johnson & Johnson, Toyota, Dow Inc., Caterpillar, Goodyear e Emerson Electric) emitiu uma declaração pedindo que Trump fosse removido pela via do impeachment: “Isto não é ‘lei e ordem’. Isto é o caos. É a regra da máfia e é perigoso.Isto é sedição e deve ser tratado como tal”[10].
A maioria dos grandes bancos (como Goldman Sach, JP Morgan Chase, Citigroup, Bank of America e Wells Fargo) “congelaram” todas as suas contribuições ao Partido Republicano como castigo e impulsionam a “expulsão” de Trump. Outras entidades, como Morgan Stanley, adotaram resoluções na mesma direção, porém menores, como suspender as doações aos legisladores que não reconheceram o triunfo de Biden[11].
No caso das Forças Armadas, os oito generais membros do Estado Maior Conjunto emitiram um comunicado no qual condenam a ocupação do Capitólio: “A violenta revolta…foi como um assalto direto ao Congresso dos EUA, ao prédio do Capitólio, e ao nosso processo constitucional”, disseram as autoridades militares. O texto agrega: “Qualquer ato que perturbe o processo constitucional não só vai contra as nossas tradições, valores e juramento, como também contra a lei”[12]. Isto é, colocam-se numa posição de nítida defesa do regime democrático-burguês. Ao mesmo tempo, é um comunicado emitido num contexto de preocupação, porque os grupos que assaltaram o Congresso tem partidários nas forças armadas e de segurança.
Por fim, todo um setor de dirigentes republicanos também o abandonou. Mitch McConnell, líder da maioria do partido no Senado, nunca apoiou as suas denúncias de “roubo”: “A eleição nem sequer foi apertada”, declarou [13]. Numerosos Tribunais Supremos e responsáveis pela eleição em Estados que eram de tradicional maioria republicana e agora perdiam (como Georgia ou Arizona) rebateram as suas denúncias. Até o seu vice-presidente, Mike Pence, negou apoio e foi duramente criticado por Trump por “falta de coragem”[14]. Alguns dias antes tinha chamado os tradicionais dirigentes republicanos de “líderes velhos e cansados”[15].
A crise do Partido Republicano
A verdade é que este partido vive uma profundíssima crise. Uma crise que não é nova, porque reflete a combinação entre processos estruturais do capitalismo nas últimas décadas, resultados da luta de classes e, inclusivamente, das dinâmicas populacionais no país.
No sistema bipartidário americano, partilhado com os democratas, os republicanos assumiram o papel do “polícia mau”, com perfil direitista e com uma base eleitoral tradicional de classe média urbana reacionária e a maioria dos setores agrários.
Ao mesmo tempo, expressam uma coligação burguesa diferente dos democratas, tendo centro no setor petroleiro e sendo integrada também pelo complexo militar-industrial (empresas como a Boeing, a Lockheed e outras) e pelas patronais agrárias. Uma das tendências de longo prazo do capitalismo é o “envelhecimento” e a redução das indústrias e tecnologias baseadas nos combustíveis fósseis e, ao surgimento, como setor mais dinâmico, dos ramos baseados em tecnologias com energia elétrica, obtidas de fontes alternativas ou com muito menor consumo de energia, como o que se denominou “telemática”. Até agora, estas burguesias tendem a expressar-se através dos democratas. Ou seja, os republicanos refletem ramos em declínio.
Ligado ao exposto anteriormente, devemos referir-nos à derrota do Projeto do Novo Século Americano, lançado pelo ex-presidente George Bush Jr., no início deste século, para avançar no domínio dos recursos naturais no mundo (essencialmente, o petróleo): se os Estados Unidos não garantissem a sua hegemonia neste campo, retrocederiam como potência mundial. Para isso era válido e necessário utilizar métodos agressivos e bélicos contra outros países, o que se denominou “Guerra contra o Terror”. Mas este projeto foi derrotado militarmente nas guerras do Iraque e do Afeganistão. Estas derrotas juntaram-se à revelação das mentiras e falsificações que o Governo utilizou para as justificar e geraram um grande desprestígio dos republicanos. Como consequência, o imperialismo fez uma viragem de direção tática para os democratas e a figura de Barack Obama [16].
Obama terminou os seus dois mandatos com muito prestígio. Entretanto, as grandes expectativas que as massas depositaram nele viram-se em grande parte frustradas pela forma como respondeu à crise iniciada em 2007/2008 (salvando empresas e bancos), pela sua política de expulsão em massa dos imigrantes e pela manutenção da legislação repressiva dos “três delitos” de Bill Clinton. Isto gerou um certo desgaste do eleitorado democrata e algumas ruturas incipientes (que foram atenuadas pelo papel negativo de Bernie Sanders), que se acentuaram pela candidatura conservadora e de pouco carisma de Hillary Clinton [17].
De repente, Donald
É no marco de um processo de crise do regime bipartidário (muito profunda nos republicanos, mais lenta nos democratas) que aparece e “cola” Donald Trump, um poderoso empresário da construção e dos negócios imobiliários. De personalidade arrogante, machista e egocêntrico, tinha ganhado popularidade com o reality show The Apprentice (“O Aprendiz”), no qual doze pessoas disputavam um cargo nas suas empresas. Cunhou a famosa frase “you are fired” (você está despedido).
Em 2015, concorre como pré-candidato republicano à presidência e ganha com folga as eleições primárias do partido, com um discurso populista de direita (o America First) que prometia recuperar a “grandeza” dos EUA diante de um mundo que “se aproveitava” dessa “debilidade”, faz críticas aos “ políticos de Washington” e aos “parasitas de Wall Street” que “não sabem o que é trabalhar”, enquanto mantinha o seu perfil machista, homofóbico e racista. Nas eleições presidenciais, embora tenha obtido menos votos populares que Hillary Clinton, acaba sendo eleito pelo antidemocrático sistema de Colégio Eleitoral (eleição indireta), no qual obtém maioria.
No contexto da crise que arrastava, Trump “revitaliza” o partido republicano. Mas fá-lo transformando-o. Por um lado, vai “dominando” cargos de governadores, presidentes de câmaras, senadores e deputados que se elegem a reboque de seu êxito eleitoral e que arrastam a “velha guarda republicana”. O mesmo ocorre com numerosos cargos do aparato do Estado e tribunais.
Por outro lado, amplia a sua base, pois ao eleitorado tradicional junta-se a mobilização eleitoral muito maior dos setores agrários inferiores do “interior profundo” e, essencialmente, o apoio de setores da velha classe operária branca, castigados pela redução das indústrias tradicionais.
Trump não era o presidente que os setores centrais da burguesia norte-americana queriam. Mas aceitam-no, tentam “domesticá-lo” e “aproveitam-no”. Foi o caso da reforma tributária aprovada em 2017, com uma grande redução de impostos às empresas, e da “guerra” comercial tecnológica contras as empresas chinesas para fechar o caminho à sua expansão nos mercados de telemóveis e computadores.
Mas, “a prateleira começou a cair”. Primeiro, com uma dinâmica de travão e de recessão da economia em 2019, que daria um salto muito grande com a pandemia, em 2020. Depois, com uma gestão desastrosa da própria pandemia, que fez com que os EUA, um país com gigantescos recursos tecnológicos e farmacológicos para a derrotar, tivessem os piores resultados do mundo.
Um elemento essencial da dinâmica da situação foram as rebeliões antirracistas que eclodiram em todo o país depois do assassinato de George Floyd e que agravaram a crise do regime [18]. Nesse contexto, os setores centrais da burguesia norte-americana veem a necessidade de mudarem de direção e veem, essencialmente, que é necessário “apagar o incêndio” e canalizar para o processo eleitoral [19].
Inicialmente, Trump colabora com esta tarefa, atraindo uma grande quantidade de eleitores republicanos. Mas, à medida que as sondagens o davam como vencido, começa a “descarrilhar” com denúncias de uma “fraude” que estava a ser preparada contra ele. Ao manter a posição de que “estavam a roubar” durante a eleição, começou a gerar a rutura massiva da burguesia com ele. Porque a política central era recompor o regime democrático burguês através da confiança nas eleições e Trump estava a “bombardear” esta confiança. A ocupação do Capitólio foi a gota d’água.
Não tão solitário
Dissemos que Trump ficou isolado pela rutura dos setores centrais da burguesia com ele. Entretanto, se considerarmos a sociedade norte-americana de conjunto, não está tão só. Ele criou objetivamente uma nova corrente política (chamemos-lhe trumpismo) com um peso social importante e que tem continuidade após a sua derrota eleitoral, inclusivamente, após os factos do Capitólio. Vejamos alguns dados.
Uma recente sondagem mostrou que 60% dos eleitores republicanos querem que Trump continue a ser o líder do partido. Se considerarmos os votos que obteve na última eleição, isto significa um apoio de 45 milhões de pessoas, cerca de 30% do eleitorado do país, percentagem muito semelhante ao “índice de aprovação” com que deixou a presidência [20]. Outra sondagem mostra que 75% dos seus eleitores republicanos acreditam que Trump “ganhou a eleição” [21].
Aqui é preciso fazer uma observação: esta corrente trumpista é muito reacionária e baseia-se nos setores sociais que analisamos. Mas não é fascista, pelo menos por agora, ainda que na sua extrema-direita se localizem as organizações, por ora muito minoritárias, que também consideramos.
Ao mesmo tempo, este peso eleitoral do trumpismo gera contradições devastadoras no interior do partido republicano. Vimos que os setores centrais da burguesia pedem que “tirem Trump de cima”. A velha-guarda republicana estaria de acordo com isso para recuperar o controle do partido e voltar a transformá-lo numa “ferramenta útil” para o regime burguês bipartidário [22].
Mas um número importante de governadores, presidentes de câmara, senadores e deputados republicanos precisam do apoio de Trump e do trumpismo para se elegerem (ou reelegerem). Então, não entram nessa linha, ou recuam no caso de a terem apoiado. Isto começa a expressar-se no processo do julgamento político pós-mandato que tramita no Senado, já que a maioria dos senadores republicanos votariam contra a sua condenação e, assim, não dariam a maioria de 2/3 necessários. [23].
Até Marc Rubio, senador pela Flórida, de origem cubana, que acompanhou Obama na sua visita à Ilha para retomar relações diplomáticas e comerciais (ou seja, neste ponto enfrentando Trump), se opôs ao impeachment por considerá-lo “estúpido e contraproducente” [24]. Não por acaso, circulou por estes dias a notícia de que Ivanka Trump (filha do ex-presidente) poderia avançar como pré-candidata a senadora pela Flórida e competir com Rubio [25].
O futuro do trumpismo
Esta corrente trumpista “chegou para ficar” no contexto da situação económica, política e social dos EUA. Quais são as alternativas do seu futuro? De modo imediato, depois da sua saída da presidência, Trump refugiou-se no seu exclusivo resort privado de sua propriedade para planear enquanto joga golfe [26].
A primeira alternativa é que o trumpismo continue dentro do partido republicano, numa espécie de “entrismo” ou “fração pública”, para utilizar o seu peso eleitoral e ir construindo e fortalecendo a sua própria corrente de governadores, presidentes de câmara, senadores e deputados. É o que aparece como o mais provável de imediato.
A segunda alternativa é que a dada altura possa ver-se obrigado a sair do partido ou que considere que já se fortaleceu o suficiente e ele próprio decida sair. Nesse caso, dar-se-ia o surgimento formal de um “terceiro partido” da burguesia imperialista norte-americana [27].
Ambas as alternativas se dariam como uma variante “dura” da “lei e ordem” dentro do regime democrático burguês. Ou seja, reafirmariam a definição de que o trumpismo não é hoje uma corrente fascista.
A terceira alternativa, que acreditamos ser a mais improvável, pelo menos num futuro imediato, é que o trumpismo se transforme, de conjunto (ou setores muito importantes), num movimento fascista. Com certeza, no contexto da crise económica, social e política que o país vive, não podemos descartar essa hipótese para o futuro. Mas não é essa a realidade atual.
Nos próximos artigos, abordaremos justamente esse contexto da crise, as perspetivas do Governo de Joe Biden e a nossa política frente a ele.
Alejandro Iturbe
Texto originalmente publicado aqui.
Tradução: Lilian Enck
Revisão para português europeu: Em Luta
Notas:
[1] Triste, solitário e final é o primeiro romance do escritor e jornalista argentino Osvaldo Soriano. Foi publicado pela Editorial Bruguera em 1973.
[2] https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2021/01/thoroughly-respectable-rioters/617644/
[3] Ver https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-12/teorias-conspiratorias-do-qanon-varrem-o-mundo-e-sao-mais-perigosa-do-que-parecem.html y www.poder360.com.br/internacional/qanon-ganha-cada-vez-mais-forca-na-alemanha-dw/
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55764003 y https://epoca.globo.com/mundo/extremistas-apoiadores-de-trump-proud-boys-mudam-discurso-chamam-ex-presidente-de-fracasso-total-24848605
[5] https://www.nytimes.com/2021/01/07/us/Capitol-cops police.html?referringSource=articleShare
[6] https://www.politico.com/news/2021/01/07/capitol-hill-riots-doj-456178
[7] Informação extraída do artigo “Rastreando o suspeito no tiroteio fatal em Kenosha” da edição em português do New York Times (27/8/2020).
[11] https://www.nytimes.com/2021/01/11/business/dealbook/corporate-political-donations.html
[14] Idem.
[16] Sobre este tema, recomendamos ler: https://litci.org/es/la-reaccion-democratica-del-sindrome-de-vietnam-al-sindrome-de-irak/
[17] Sobre o governo Obama ver: https://litci.org/es/el-balance-de-los-gobiernos-obama/ y sobre Sanders: https://litci.org/es/bernie-sanders-el-candidato-independiente-de-los-trabajadores-o-una-trampa/
[18] https://litci.org/es/un-proceso-revolucionario-sacude-estados-unidos/
[19] https://litci.org/es/estados-unidos-entre-la-rebelion-negra-y-las-elecciones/
[20] https://www.bbc.com/mundo/55777096
[21] Pesquisa do Pew Research Center realizada entre 8 e 12 de janeiro de 2021.
[24] https://www.istoedinheiro.com.br/republicanos-anunciam-que-irao-se-opor-a-impeachment-24/
[26] https://elpais.com/internacional/2021-01-20/florida-el-refugio-dorado-de-donald-trump.html
[27] Sobre esta questão, ver, por exemplo: https://aterraeredonda.com.br/um-terceiro-partido/