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Quebrar patentes e produzir vacinas para salvar todos, não só os ricos e brancos

"O primeiro-ministro António Costa é o atual presidente da União Europeia, assim como outro português, António Guterres, é o secretário-geral das Nações Unidas. São cargos importantes, que poderiam ser utilizados para pressionar a União Europeia (UE) a quebrar as patentes das vacinas contra a Covid-19 e divulgar os contratos feitos com as farmacêuticas que as produzem. Não é isso que acontece."

Bem pelo contrário, Portugal – ao lado de todos os países ricos, e do Brasil – é um dos que se opõem à suspensão das patentes das vacinas, proposta apresentada pela Índia e a África do Sul à Organização Mundial do Comércio (OMC) e apoiada por mais 100 países. Com o monopólio desses fármacos, a indústria lucra, enquanto a morte, a doença e a pobreza se espalham pela maior parte do planeta. 

Apesar de estarmos a passar por uma fase mais branda da pandemia no nosso país, após um duro confinamento de quase três meses, não podemos esquecer-nos de que Portugal é o 28.º do mundo com maior número de mortes causadas pelo vírus; que este não parou de se espalhar, causando até hoje mais de 3 milhões de vítimas fatais; e que a contaminação não poderá ser detida enquanto pelo menos 70% da população não estiver imunizada. Mais uma vez, não é isso que acontece.

Como está a vacinação

Em Portugal, até 18 de abril, tinham recebido as duas doses da vacina apenas 6,77% da população (19,20% receberam a primeira dose), o que representa um total de 25,96 doses por cada 100 habitantes. Esse número de doses por habitante é semelhante em toda a UE, e aparentemente será acelerado nos próximos meses, mas bastante inferior à marca registada pelos campeões da vacinação, como Estados Unidos, Inglaterra ou Israel. O primeiro assinalava 61,56 doses por habitante, em meados de abril, o segundo 62,03, e o terceiro 119,12. Conforme divulgado pela imprensa, sabemos que pelo menos dois deles, EUA e Israel, pagaram mais caro à farmacêutica Pfizer pela sua vacina, numa clara demonstração da política do “salve-se quem puder” praticada por esses países.

De acordo com o centro nacional de estatística inglês, 54,9% da população já possui anticorpos contra a Covid; nos Estados Unidos, e também na Inglaterra, os números de casos e de mortes caíram drasticamente depois do pico de janeiro/fevereiro últimos, certamente em virtude da vacinação e de medidas de confinamento. Em Israel chegou-se a levantar o uso obrigatório de máscara na rua, em contraste absoluto com o que acontece na Palestina ocupada, onde haviam sido administradas somente 3,58 doses por 100 habitantes. 

Números insignificantes de doses são a realidade na maior parte do planeta, em especial no país que, ao lado do Brasil, está a ocupar o 2º lugar em número de casos, a Índia, com 8,89 doses administradas por cada 100 habitantes. Ironia das ironias, a Índia é o maior centro de produção mundial da vacina russa Sputnik V e da Covashield, versão da vacina da AstraZeneca processada localmente, só que não controla a sua distribuição.

A Índia, assim como Brasil, Portugal e muitos outros países, teria todas as condições de produzir e distribuir vacinas aos seus habitantes e inclusive assegurá-las a preço de custo aos que não possuem essa competência. No Brasil há pelo menos dois laboratórios estatais qualificados para isso – a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantã -, mas um governo genocida como o de Bolsonaro jamais enfrentaria o imperialismo e as suas farmacêuticas, como até outros governos  brasileiros já o fizeram.

Produção de vacinas: um investimento na saúde pública e na economia

Na primeira vez que um governo brasileiro quebrou uma patente farmacêutica[1] estava no poder o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ilustre defensor da privatização de empresas públicas e humilde servo dos patrões imperiais. Pois, em agosto de 2001, o seu ministro da Saúde, José Serra, anunciou que um dos medicamentos que compunha o coquetel antissida, o nelfinavir, passaria a ser produzido pela Fiocruz. Uma longa negociação com o laboratório Roche, dono da patente, fracassara, e o governo resolveu quebrá-la e economizar 50% no preço daquele medicamento. O que teria levado o governo brasileiro a proceder assim é tema para outro artigo que não este, mas ilustra bem o facto de que é possível, mesmo a um governo capitalista comum e corrente, adotar medidas que protejam a saúde do povo e os recursos públicos.

Em Portugal, vários pesquisadores e laboratórios têm assegurado a viabilidade de se produzir vacina localmente, se houvesse, é claro, investimento para isso. Um grande investimento, que dotaria o país não só de capacidade de resposta a esta pandemia, mas também a desafios futuros, como defendeu Teresa Summavielle, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto, ao jornal Público.[2]

Segundo a cientista, o desenvolvimento de uma vacina portuguesa contra a Covid-19 custaria cerca de 45 milhões de euros, além de mais 100 milhões numa infraestrutura para assegurar a produção. Uma pechincha quando comparamos esses valores à quantia de 476 milhões de euros, reservada pelo governo no Orçamento de Estado deste ano para cobrir o saco sem fundo do Novo Banco – uma das histórias mais mal explicadas da história financeira do país.

Iniciativas no sentido de produzir uma vacina portuguesa contra a Covid estão a ser divulgadas por laboratórios privados, como a Immunethep, em Cantanhede (ver Público, 15/04/2021). A fase de ensaios pré-clínicos da vacina chamada Silba tem sido bem-sucedida na produção de anticorpos e projeta-se começar no segundo semestre a etapa de teste em humanos. Uma outra empresa de biotecnologia, a Genibet, conhece a tecnologia do ARN mensageiro, utilizada nas vacinas da Pfizer e Moderna, e dos adenovírus desativados, semelhantes aos das vacinas da AstraZeneca e da Janssen.

As informações que nos chegam demonstram ser possível desenvolver uma vacina portuguesa a médio prazo e, muito mais rapidamente, produzir localmente aquelas que já estão no mercado, desde que houvesse a quebra das patentes.

Contratos secretos e lucros escandalosos

A Comissão Europeia continua a recusar-se a divulgar os contratos feitos com as farmacêuticas para a aquisição de vacinas contra a Covid-19, apesar da insistência de entidades como o Corporate Europe Observatory, Médicos Sem Fronteiras ou Human Rights Watch para que estes se tornem públicos. Sabe-se, por outro lado, que os lucros das farmacêuticas se preveem monstruosos: a margem de lucro da Pfizer seria de 30% só este ano. A Moderna, cuja receita em 2019 não ultrapassou os 60 milhões de dólares, estima para 2021 uma receita de 16 biliões de dólares. Suas ações subiram 187% nos últimos dose meses. 

Os lucros das farmacêuticas representam, na realidade, a privatização do dinheiro público. No caso da Pfizer e da Moderna, por exemplo, as duas descobertas fundamentais que deram origem à vacina que comercializam – a proteína viral e o conceito de RNA modificado – surgiram de pesquisas financiadas pelo governo dos EUA. O financiamento maciço da elaboração e produção das vacinas foi garantido por recursos estatais de vários países. Portanto, é duplamente imoral o facto de as farmacêuticas, com o aval da Comissão Europeia e da maioria dos estados, não compartilharem a tecnologia de fabrico das vacinas: imoral porque significa deixar morrer pessoas que poderiam ser salvas e imoral porque representa um roubo dos recursos públicos. 

Cristina Portella

Texto originalmente publicado na versão impressa do jornal Em Luta, Nº 28 (abril 2021)


[1]    Mais informações em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2308200101.htm

[2]    https://www.publico.pt/2021/03/10/ciencia/noticia/covid19-desenvolver-vacina-portuguesa-custaria-45-milhoes-euros-1953932