Internacional

A Ucrânia e o PCP… Poderá a luta contra o imperialismo, encobrir a denúncia de uma invasão militar sobre uma nação oprimida?

No aniversário da guerra de invasão russa da Ucrânia, depois de um país parcialmente destruído, com mais de 150 mil feridos e mortos, entre civis e militares, e uma vaga de imigração de 4,8 milhões de pessoas, deveria ser uma discussão ultrapassada que entre os trabalhadores há que construir uma solidariedade com o povo ucraniano e a sua resistência, que impossibilitou que esta invasão fosse um simples passeio para a Rússia. Vejamos se assim está a ser…

Este artigo pretende abordar de forma breve alguns temas que têm aparecido em torno da guerra que continua a marcar a atual situação no mundo: a invasão russa da Ucrânia. Não se pretende esgotar aqui uma discussão que é extensa e complexa,apenas fazer uma modesta contribuição para o debate com alguns trabalhadores.

PCP: da guerra de operações especiais à envergonhada posição atual

Para os temas que pretendemos abordar e para evitar qualquer discussão lateral e desnecessária, o PCP é escolhido como exemplo, porque entre os trabalhadores é o partido que melhor sintetiza uma posição que entrega os trabalhadores ucranianos aos invasores russos ou às ilusões nos supostos blocos solidários da NATO/UE.

Depois de uma posição inicial que recusava tocar na palavra “invasão” ou “guerra”, pressionado pelo descontentamento interno e pela comoção geral dos trabalhadores com o povo ucraniano, o PCP foi adotando um discurso mais esguio e dúbio, mas que no essencial mantém uma leitura global de que estamos diante de uma guerra por procuração do imperialismo norte-americano, que procura avançar sobre o território da ex-URSS; que para isso impulsionou um golpe de estado contra Yanukovich em 2014, colocou no seu lugar um governo fantoche e avançou militarmente com a NATO sobre a região. O que leva a concluir que estaríamos assim diante de uma ação militar russa, anti-imperialista e de defesa nacional. É esta posição que Jorge Cadima sintetiza num texto divulgado em maio de 2022 (“Notas soltas sobre a grave situação mundial”, in O Militante aio-Junho/2022), enquanto o exército russo invadia já há 3 meses o território ucraniano.

O que foi o processo de 2014 na Ucrânia? Golpe ou processo revolucionário?

Em 2014, debaixo de uma crise económica que se fazia sentir no país, o governo de Yanukovich, depois de negociações que procuravam uma aproximação à UE já desde 2013, decide recuar e voltar-se para a Rússia, mantendo uma política que alternadamente vendeu a economia ucraniana ora à Rússia, ora à UE. Em reação, milhares de jovens saem à rua em protesto contra o fim destas negociações e são barbaramente reprimidos pela polícia de choque, a Berkut. Não contente com a repressão, Yanukovich decreta leis restritivas para limitar a liberdade de protesto. Seguem-se protestos gigantescos, que colocam em marcha o povo ucraniano contra um governo musculado e subserviente a interesses alheios aos dos trabalhadores do país.

Os primeiros protestos de jovens com bandeiras da UE foram substituídos por ações que resistiram à repressão governamental e contra um governo vassalo, movida pela luta por melhores condições de vida, por liberdades democráticas e pela autodeterminação nacional. A UE passou a secundária no processo. Veja-se que no auge dos protestos, dos manifestantes acampados na praça Maidan, em inquéritos realizados pela imprensa, apenas 30% eram favoráveis à entrada na UE.

A tese de golpe de estado defendida pelo PCP para justificar inclusive a sua política atual que relativiza a invasão russa da Ucrânia não sobrevive à prova dos factos.

Não se nega aqui que existiu uma disputa da direção política do processo revolucionário ucraniano. Setores pró-integração europeia ou até de extrema-direita estiveram presentes disputando a condução do processo. O próprio imperialismo norte-americano e a UE também o fizeram com o seu apoio externo. Mas essa lógica da escolha do “inimigo principal”, como faz o PCP, nega um processo vivo em que as disputas de direção por forças reacionárias não podem negar a justa luta contra os governos de turno dos patrões, ainda mais quando estamos diante de governos semiditatoriais e que, no caso, mantinham alternadamente o povo debaixo da opressão nacional russa, ou do imperialismo.

Na verdade, a política de grande parte da esquerda, na qual se inclui o PCP, que associou o processo revolucionário ucraniano a um golpe da direita e do imperialismo, com a UE à frente, entregou os trabalhadores na mão de setores reacionários e pró-integração europeia, que salvo raras exceções (como alguns sindicatos) não obtiveram apoio na sua justa luta contra a opressão nacional e um governo semiditatorial. Este é o problema de analisar processos pelo seu resultado e pelos setores que neles intervêm, escolhendo “inimigos principais” ao invés de, na complexidade do processo, procurar discernir o que deve ser o norte dos marxistas para olhar o mundo, o confronto de interesses entre os patrões e os trabalhadores.

A Rússia, um estado soberano?

Outro dos argumentos afirmados por Jorge Cadima/PCP no artigo anteriormente citado é o de que no processo da Ucrânia assistimos a uma retaliação do imperialismo à Rússia, pelo facto desta última se manter como um estado soberano. Mais uma vez uma tese que não sobrevive à realidade.

A Rússia é hoje um país exportador de produtos do setor primário, nomeadamente gás e petróleo, fortemente dependente do comércio com os países imperialistas, principalmente da Europa. Possui uma indústria praticamente destruída em relação ao que era no passado soviético. As grandes empresas nacionais como a Gazprom têm atualmente uma grande dependência do mercado financeiro do ocidente. E tudo isto se aprofundou nos últimos 20 anos, com Putin na condução dos rumos do Estado.

Não se trata de um país atacado pelo imperialismo, mas sim de um país dependente, embora tenha a contradição de ter herdado um arsenal militar da URSS e ao mesmo tempo desempenhar um papel histórico de opressor, na região leste da Europa e na Ásia.

O sudeste da Ucrânia: será isto o direito à autodeterminação?

Por fim, o PCP, assim como outros setores da esquerda, tentam confundir e baralhar o processo de opressão russa da Ucrânia. No seu lugar colocam uma luta pela autodeterminação da maioria russa do sudeste ucraniano nos territórios de Donetsk e Lugansk. De tão absurdo, seria semelhante a falarmos da “autodeterminação” do povo de origem ibérica em Ceuta, caso Marrocos ameaçasse o poder do Estado Espanhol sobre o território.

Não bastassem os textos do início do séc. XX de autores supostamente reivindicados pelo PCP, como Lenin, atestando à Ucrânia a condição de nação oprimida pela Rússia, o facto de em 1987 apenas 16% das escolas na Ucrânia lecionarem o idioma ucraniano, contra 84% que lecionavam o russo, bastaria para entender qual a nação historicamente oprimida, na relação entre a Rússia e a Ucrânia.

Diante de uma guerra de agressão apoiamos a resistência

Estamos assim diante de uma guerra de agressão à soberania da Ucrânia, cujos trabalhadores daquele país são os principais afetados. Por outro lado, com o rabo preso à condução do imperialismo da UE/NATO e à oligarquia do seu país, o governo de Zelensky não é direção capaz de garantir até ao fim uma batalha sem tréguas contra a invasão ou qualquer tipo de agressão à soberania. Exemplo disso são os ataques deste governo aos direitos laborais dos trabalhadores, que contribui para o enfraquecimento da frente de batalha, garantida em grande parte pela classe trabalhadora ucraniana.

É por isso que após um ano da invasão russa da Ucrânia devemos reafirmar o apoio incondicional à resistência ucraniana e em particular ao seu setor operário, como os trabalhadores organizados no Sindicato Independente dos Mineiros de Khryvyi Rih. Só da ação independente e organizada da classe trabalhadora ucraniana poderá renascer uma Ucrânia unida e soberana.

João Reis