Só a ficção científica poderia compor um cenário tão trágico e caótico, pensávamos nós. Hoje percebemos que a gestão da pandemia de Covid-19 pelos governos capitalistas aproxima-nos rapidamente de uma distopia.
Sem garantir condições de sobrevivência digna às populações pobres para que possam cumprir as, já por si, insuficientes medidas de confinamento decretadas; sem empenho em impedir os despedimentos, bem pelo contrário, vide o caso TAP em que o governo português é o patrão e já despediu ou tenciona despedir milhares de trabalhadores; e sem o compromisso de salvar vidas, seja não injetando os recursos necessários no Serviço Nacional de Saúde (SNS), seja não obrigando os privados a prestarem atendimento aos doentes, os governos capitalistas revelam-se incapazes de enfrentar um desafio como este que estamos a viver.
A vacinação é um dos capítulos desse desatino. Desenvolvida em tempo recorde, graças ao conhecimento acumulado de cientistas e laboratórios universitários e a recursos estatais, a vacina contra o Covid-19 acabou por ser apropriada pelas grandes farmacêuticas que transformaram um problema de catástrofe humanitária num negócio milionário.
A disputa pelas vacinas
No poderoso continente europeu, onde governos imperialistas da dimensão de uma Alemanha, França ou Inglaterra tentam assegurar a imunização em massa dos seus nacionais, o que prima é o atraso na entrega das vacinas e a disputa pelo seu controle. Tornou-se pública a acirrada contenda entre a União Europeia (UE) e o primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, pela posse das vacinas fabricadas pela AstraZeneca. A suspeita é de que a farmacêutica sueca tenha desviado a sua produção para, além de Inglaterra, os Estados Unidos e Israel. Esses dois últimos países contam-se entre os que mais já vacinaram as suas populações.
Para garantir as suas doses, Israel teria pago pelo menos o dobro do valor desembolsado por outros países – entre 25 a 50 euros a dose, enquanto aos Estados Unidos teria custado 15,8 e 12 à UE –, além de ceder ao consórcio BioNTech/Pfizer os dados dos seus doentes. Fora do plano de vacinação israelita estão os palestinianos, apesar de o Estado ocupante controlar todos os medicamentos que chegam aos territórios de Gaza e Cisjordânia. O Ministro da Saúde de Israel só admite ceder aos palestinianos as doses que sobrarem depois de encerrada a vacinação dos israelitas.
Protestos
A atrapalhar os planos do governo israelita de vacinar 80% da população até ao final de maio está a atitude negacionista dos judeus ultraortodoxos, responsáveis por 1/3 das infeções, que se recusam a confinar e a tomar vacina. Conflitos entre essa comunidade e a Polícia têm sido habituais.
Não só lá. Manifestações contra o uso de máscara, toque de recolher e outras medidas de bloqueio do coronavírus têm surgido em vários pontos da Europa, reunindo, segundo a imprensa, extrema-direita, negacionistas ou, simplesmente, pessoas que se opõem aos seus governos. Nos Países Baixos, protestos aconteceram em Amesterdão e Roterdão, mas também em cidades menores, durante várias noites em janeiro, quando carros foram incendiados e a Polícia atacada com pedras. O alvo do protesto seria o toque de recolher às 21 horas, mas certamente teve como pano de fundo a indignação popular contra um Governo envolvido na escandalosa supressão de ajudas sociais a milhares de famílias, na maior parte estrangeiras, sob falsas alegações.
Manifestações com centenas ou milhares de pessoas foram realizadas na Hungria, na Bélgica e na Áustria. O atraso na vacinação e o endurecimento das medidas para conter o agravamento da pandemia não auguram cenários mais tranquilos no próximo período.
Os desiguais
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), o mundo está “à beira de um fracasso moral catastrófico”. A distribuição desigual das vacinas, prevê Tedros Adhanom, o seu diretor-geral, terá como consequência o prolongamento da pandemia, das restrições para contê-la e do sofrimento humano e económico. Se na rica Europa a vacina tarda a chegar, noutros continentes esta possibilidade é conturbada e ou muito remota. Na América do Sul, os países apelam às vacinas russa e chinesa, mas há contratempos. A russa Sputnik V ainda não passou pela terceira fase de testes em humanos; e, no Brasil, o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro tenta apagar as ofensas que fez contra o governo chinês e a sua vacina Coronavac para garantir os recursos necessários à sua fabricação no país.
Em África, a situação é bem mais complicada. Com a pandemia a progredir, só conta atualmente com as doses a serem distribuídas pelo Mecanismo de Acesso Global a Vacinas contra COVID-19 (Covax), um consórcio de países apoiado pela OMS cujo objetivo é garantir até 20% das doses necessárias para cada um dos participantes. Mas e os outros 80%? Enquanto em Inglaterra cerca de 8 milhões de pessoas já tinham recebido a primeira dose da vacina da BioNTech/Pfizer no final de janeiro, na Guiné só tinham chegado 25 doses do imunizante.
Quebra das patentes
Com a corrida pelas vacinas, o seu preço está a subir, fazendo com que apenas uma minoria de países possa usufruir de um medicamento crucial para a Humanidade. A única forma de garantir que todos os habitantes do planeta sejam vacinados é quebrar as patentes, de forma que os países possam fabricá-la sem constrangimentos. Esta proposta chegou a ser apresentada pela Índia na Organização Mundial do Comércio (OMC), mas foi recusada pelos países ricos. O fracasso moral do capitalismo e dos seus agentes está à vista. Só nos resta lutar para impedir que esse verdadeiro genocídio aconteça.