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Da Bósnia à Ucrânia

Recentemente, a partir da LIT-QI impulsionamos e integramos o Comboio de Ajuda Operária à Ucrânia organizado pela Rede Sindical Internacional, que além disso participou de um ato internacionalista do 1º.de Maio na cidade de Lviv. Esta participação não é eventual nem um fato isolado na história de nossa corrente internacional. Há quase 30 anos também foi organizado um comboio durante uma guerra, nesse caso pela invasão da Sérvia à Bósnia.

Por isso, consideramos importante resgatar uma série de artigos que se encontram no Arquivo León Trotsky (https://archivoleontrotsky.org/) da LIT-QI escritos em 1994 durante a guerra da Bósnia.

Estes materiais históricos são reunidos neste artigo do companheiro Angel Luis Parras, militante de Corriente Roja no Estado espanhol, que foi membro da Ajuda Operária à Bósnia e participou dos comboios que levaram a ajuda aos mineiros bósnios nos anos da guerra. No final do texto, disponibilizamos os links dos documentos do Arquivo.

A ajuda operária na Guerra

Quando as tropas russas estavam prestes a completar duas semanas de sua invasão à Ucrânia, completavam-se 30 anos do início da guerra na Bósnia Herzegovina.

Três anos de ocupação e guerra de libertação nacional (1992-1995) em um país que tinha apenas 10% da extensão da Ucrânia e 4,3 milhões de habitantes, deixaram um panorama desolador. Os números de mortos oscilam entre 130 e 230 mil, os desalojados superaram dois milhões de pessoas e os campos de concentração e massacres como o de Srebrenica ficaram na história.

A “esquerda” se dividiu então entre os que exigiam que a ONU e a OTAN interviessem e os que louvavam o carniceiro sérvio Milosevic, apresentando-o como o “anti-imperialista” inclusive como o “último baluarte europeu do socialismo”. Para os primeiros, a guerra era uma “guerra religiosa” e, portanto o envio de forças de interposição, “Forças de paz” (os capacetes azuis) era a única solução para “assim evitar uma matança”. Para os segundos, com as organizações estalinistas à frente, não havia mais que uma guerra de agressão imperialista e os bósnios não representavam mais que “os muçulmanos”, os fascistas – yihadistas “aliados do imperialismo”.

Como hoje na Ucrânia, não tiveram a menor preocupação em  definir a natureza da guerra[1]  ou das guerras que foram se sobrepondo. O desencadeamento da guerra pelo exército sérvio, a ocupação da Bósnia após o referendo no qual a Bósnia Herzegovina votou massivamente pela independência, era para os amigos confessos e inconfessos de Milosevic uma questão menor e os massacres, estupros de milhares de mulheres, saques dos povos, não eram mais que “propaganda imperialista”.

Nós marxistas revolucionários/as não esquecemos nunca que qualquer que seja a situação, nossa política tem um eixo estratégico sempre: construir de forma consciente a ação independente da classe operária, que por sua localização material na sociedade é a única capaz de combinar as tarefas de libertação nacional e social. E se isso é assim em tempos de paz, torna-se mais dramático e presente em tempos de guerra, ou seja, da “continuidade da política por outros meios”.

Uma organização revolucionária, portanto, está obrigada a defender e a construir uma linha de independência de classe sempre. Mas, em meio à semelhante confusão, com todos os meios de comunicação, governos e partidos de “esquerda” contra (salvo alguma honrosa exceção) o que uma organização muito pequena como a nossa poderia fazer [2], sem dinheiro nem meios materiais, com alguma experiência na luta de classes diária, mas nenhuma na guerra. Contudo, na verdade tínhamos pelo menos três tesouros. O primeiro, a internacional, a LIT-QI e o vínculo com militantes revolucionários que não eram da LIT-QI; o segundo, sermos educados/as em um critério de classe em tudo o que fazíamos e o terceiro, a determinação de fazer as coisas. De tudo isso, nasceu a Ajuda operária à Bósnia.

De onde vêm esses mineiros e como nasceu a Ajuda Operária à Bósnia

Hoje, quando enviamos a ajuda arrecadada ao Sindicato Independente dos Mineiros de Kryvyi Rih, a partir das organizações da “esquerda” exclamam: “Que estranho! De onde vieram esses mineiros ucranianos que não conhecemos?”. Na verdade, o argumento não difere praticamente em nada ao daquele de 30 anos atrás, quando começávamos a arrecadar ajuda para os mineiros das minas de Kreka na cidade bósnia de Tuzla.

É normal então que não conhecessem os mineiros de Kreka nem conheçam agora os de Kryvyi Rih. É assim porque enquanto esses mineiros lutavam em fins dos anos 80 e muitos na década de 90, para defender seu trabalho e seu pão do roubo infame que exerceram as privatizações que acompanharam a restauração capitalista (liderada pela burocracia “comunista”), a “esquerda ocidental” não podia ver nada porque seus olhos estavam cheios de lágrimas pela “queda do socialismo” e qualquer das muitas manifestações nas ruas ou greve, e qualquer protesto por direitos democráticos e nacionais não podiam ser mais que produto da reação e do fascismo que assim festejava a queda do “socialismo real”.

Como agora, são fiéis a uma narrativa e os fatos da realidade não podem de forma alguma contradizê-la. Para eles, qualquer contradição entre a narrativa e a realidade só tem uma explicação: a realidade está equivocada.

Mas nós que tentamos não perder, nem na paz nem na guerra, o fio da classe, sabíamos que essas organizações operárias existiam, embora não tivéssemos, a princípio, contato direto com elas, nem existia internet para procurá-las. E, efetivamente, as encontramos. Os mineiros de Kreka na Bósnia eram os mesmos que nos anos 84-85 responderam ao chamado dos mineiros britânicos em sua duríssima luta contra o governo de Margaret Thatcher.  Os mineiros bósnios concordaram em entregar, naquele momento, um dia de seu salário mensal para os companheiros britânicos . Muitos anos depois, em 1993, eram esses mineiros bósnios os que pediam ajuda aos seus irmãos britânicos.  Solicitando sua ajuda diziam: ”Lembramos aos nossos amigos na Grã Bretanha que nossos corações mineiros sempre pulsaram pela bondade da humanidade, pela justiça, pela classe operária”.

E assim começava em 1993 na Grã Bretanha a Ajuda Operária à Bósnia. Nós companheiros/as da LIT-QI respondemos ao chamado dos companheiros/as britânicos e em particular de um dos dirigentes e companheiros mais reconhecidos e queridos fora e dentro da LIT-QI Bill Hunter [3].

Correio Internacional 64

No Estado espanhol, do mais absoluto nada, começamos a buscar ajuda, dinheiro, meios de todo tipo. Conseguimos caminhões, toneladas de alimentos, roupa e material sanitário. A ajuda era produto do enorme esforço de muitos trabalhadores/as: os trabalhadores de UPS de Madri, da Magneti Marelli ou dos mineiros de Sallent na Catalunha, dos trabalhadores da EMT madrilenha que consertaram os caminhões para nós, dos bombeiros de Bilbao e Madri que coletaram ajuda e vieram à Bósnia. De muitos professores/as, jovens, trabalhadores/as que nos ajudaram a coletar dinheiro organizando festas, vendas de camisetas ou coletando comida e outros materiais em Madri, na Catalunha e Andaluzia.

Não foi nada fácil, nem foi na primeira vez que conseguimos por os pés na fronteira de Mostar e atravessar um país em guerra com os caminhões do comboio pelas montanhas. Quando conseguimos chegar a Tuzla não só entregamos a ajuda, mas vimos ao vivo, o sofrimento e a luta de um povo cujo exército, a «Armija», era formado pelos mineiros, trabalhadores da indústria, estudantes da Universidade. O II Corpo da Armija  encarregado da defesa de Tuzla tinha em suas fileiras 5.000 mineiros do sindicato aos quais se somavam 500 mineiros do sal, mais de 1.000 da Central térmica e outros tantos de outras fábricas. “Isto não é uma guerra civil. É uma guerra de libertação. É a defesa do direito de existir como nação” nos explicava o Reitor da Universidade de Tuzla, em uma das muitas reuniões e contatos que tivemos durante os dias que permanecemos a cada chegada de um novo comboio.

Correio Internacional 64

Ajudar a colocar nas mãos dos trabalhadores/as o controle de todas as tarefas da guerra

Por que toda esta confusão, por que não arrecadar a ajuda e dá-la à ONU ou a algumas ONGs ao invés de fazer algo que colocava em risco a própria vida dos companheiros/as? Esta pergunta ia se repetindo entre os trabalhadores/as e jovens bósnios com quem falávamos. O próprio presidente do Conselho de Sindicatos de Tuzla, Fikreta Sijercic, na reunião à qual fomos convidados, após agradecer-nos efusivamente a ajuda, não pode evitar fazer-nos essa mesma pergunta: “quais eram as motivações que nos levavam várias vezes a entregar diretamente a ajuda apesar dos perigos aos quais estávamos obrigados a enfrentar”.

Fomos à Bósnia entregar ajuda de operários para operários porque cada modesta contribuição tinha um objetivo inequívoco: “há que potencializar e ajudar a desenvolver que a ajuda seja controlada pelas organizações operárias, porque assim se promove uma política de independência de classe colocando nas mãos dos trabalhadores as tarefas de libertação nacional e social” [4].

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As guerras, inclusive as de libertação nacional como na Bósnia e hoje na Ucrânia, não fazem a luta de classes desaparecer. Com que critérios funciona uma economia de guerra? Com que critério as necessidades básicas da tropa e da população, a comida, a roupa, a moradia são atendidas? Como os serviços sanitários são organizados …? Como os suprimentos energéticos, gasolina, diesel, luz são garantidos…? Como os idosos e as crianças são cuidados?  E como se combate a quinta coluna na retaguarda, não apenas a mais evidente, a dos invasores, mas a dos burgueses ou aspirantes a sê-lo à base de roubo?…Esses canalhas que lucram com o mercado negro, roubando a ajuda humanitária para negociar com ela ou saqueando as moradias que ficam vazias quando os moradores saem correndo das casas para não morrer em um bombardeio?

Potencializar a participação das organizações operárias no controle da economia e da vida política durante uma guerra é o primeiro e imprescindível passo para que a classe operária atue de maneira independente. A burguesia, inclusive a do país invadido, empreenderá as tarefas da guerra a partir da ótica de sua classe, a partir do respeito absoluto à propriedade privada dos grandes meios de produção e troca. E tanto se vencer na guerra, como se perdendo consegue preservar seu domínio em uma parte do país, iniciará as tarefas de reconstrução com o mesmo critério de classe com o qual dirigiu a guerra.

Hoje, quando colocamos todo nosso empenho em derrotar a invasão russa e dedicamos nosso esforço e ajuda aos operários/as ucranianos de Kryvyi Rih, recordar a experiência daquela guerra e a solidariedade entre trabalhadores/as de trinta anos atrás, deve fazer parte da Ajuda Operária.

Notas e links aos textos do Arquivo León Trotsky:

[1]  O estudo sobre as diferentes definições da natureza das guerras até chegar ao marxismo ficou sintetizado em um breve trabalho publicado em 2011 pela revista teórica da LIT-QI Marxismo Vivo,  “Algumas considerações sobre as guerras” (https://archivoleontrotsky.org/view?mfn=12787).

[2]  Éramos, na época, dois pequenos grupos em fase de fusão que acabaria dando lugar ao PRT

3 Bill Hunter, foi um dirigente veterano do trotskismo inglês. Bill era portuário de Liverpool, foi membro do Partido Trabalhista Independente durante a Segunda Guerra Mundial e, em 1944, tornou-se trotskista, cumprindo um papel de dirigente no Partido Comunista Revolucionário por muitos anos. Em 1988, aderiu à Liga internacional dos Trabalhadores e integrou sua Comissão Internacional de Moral.

[4]  Correio Internacional nº 64, agosto 1994 (https://archivoleontrotsky.org/view?mfn=7884).

Por: Ángel Luis Parras
Tradução: Lilian Enck